Renan Portela: Análise do debate sobre o aborto no Brasil

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Há algo de burro, como sempre, mas também há algo de autoritário no debate sobre o aborto, principalmente porque são dois lados que de fato não se misturam, polarizados em suas premissas de como o mundo deveria funcionar de acordo com sua própria bolha. A tentativa de se encontrar um ponto de sensatez, uma lógica comum, ou de tratar a política como a arte do possível, torna-se inviável e transforma o campo de debate num ringue com rounds infinitos e nenhum nocaute. Uma luta em que ninguém pode jogar a toalha.
De um lado, ironicamente fazendo o advogado do diabo, temos as motivações religiosas. E aqui tentarei fazer uma espécie de exercício de empatia, convidando quem não é religioso (ou quem até é, num certo ponto, mas não permitindo que isso molde todas suas opiniões) a fazer o mesmo.
Se um sujeito acredita fielmente que temos um indivíduo de direitos no momento da concepção (baseado normalmente em sua visão religiosa), a coerência dessa pessoa passa sim por necessariamente considerar que qualquer aborto não natural é um assassinato. Para essa pessoa, “aquilo” já é outra pessoa, que é inocente e não pode simplesmente ser descartada por um procedimento médico.

Além de uma questão moral, entra na equação uma questão de direito individual daquilo que já é uma pessoa. Se a vida começa na concepção, o “individuo” no útero de uma mulher deve ser sentenciado à morte por possíveis consequências na vida dessa mulher, por causas ou escolhas? Para o sujeito que acredita que esse indivíduo passa a existir como um ser humano desde a sua concepção, o foco de direito passa a ser direcionado para o “bebê” (como parte mais frágil), e não para a mulher que dará a luz, fora alguns casos em que a manutenção da gestação coloque em risco evidente a vida da mãe (nem sempre).

Para essas pessoas, de nada adianta o posicionamento do Conselho Federal de Medicina, ou fazer discursos sobre direito da mulher ao próprio corpo, usar conceitos didáticos sobre o desenvolvimento do feto e seus graus de complexidade, defender o direito ao aborto até o terceiro mês de gestação, discursar que o aborto já seria legalizado pra mulheres ricas que podem pagar por eles por baixo dos panos, que mulheres pobres morrem em tentativas de abordo desastrosas, etc. Qualquer argumento desses, por mais coerentes que possam parecer para quem os profere, chegará num limbo existencial se o outro lado crê na vida desde a concepção, com a ideia de alma e tal. A vida do feto sempre será prioridade para essas pessoas, e elas continuarão se considerando justas e boas por a defenderem. Por isso, também é inútil dizer que “se você é contra o aborto, é só não abortar e deixar quem quer ou precisa abortar em paz”, porque essas pessoas se sentiriam negligenciando a vida que ali está.

Aqui teremos alguns que vão considerar que a religião é que é o problema, e que por isso deveria ser combatida. Mas realmente te soa progressista atacar a liberdade religiosa? Outros dirão que essa é mais uma demonstração de que o Estado não deve considerar visões religiosas para legislar, porque o Estado deve ser laico. Mas o tema não é tão simples. Um Estado Laico e democrático deve garantir, entre outras coisas, a liberdade religiosa e de crença. Não se deve confundir um Estado Laico com a ausência de religiosidade, sendo que é justamente o oposto. O que não significa que o Estado deva eleger uma religião padrão baseado em populismo como costuma ocorrer, mas numa sociedade de absoluta maioria cristã, como desconsiderar a opinião desses milhões de cidadãos eleitores? Como fechar essa equação? Não teríamos assim uma completa anomalia de representatividade? Um Estado Laico que desconsidera a visão de mundo da maioria de seu povo porque ela é moldada religiosamente, e elege “pelo que” essa visão deve ser moldada, seria infelizmente um Estado utópico e autoritário, por mais que trouxesse ares de modernidade e apelo científico.

Aliás, não só de religião vive o posicionamento contrário ao aborto, já que alguns religiosos partem do argumento cientifico do novo código genético que é criado na fecundação, quando espermatozoide e óvulo se combinam. Um argumento válido, mas que se torna ainda mais complexo ao considerar que até a terceira semana, um embrião ainda pode se dividir, originando gêmeos. Complicado, né?
Devo deixar claro que meu exercício de empatia tem limites e não é direcionado às figuras públicas deploráveis (que não citarei o nome aqui) que usam o estupro pelo tio de uma menina de 10 anos e a gravidez consequente como modo de se promover (algo que tem gente que tenta desesperadamente fazer durante toda sua existência), instigando fiéis religiosos e fiéis políticos estupidamente radicalizados a invadirem o hospital onde estava essa criança, sem nenhuma preocupação com ela e com as consequências de seus atos. Pior de tudo, ainda fazendo uso de um discurso absolutamente incoerente de defesa à vida, algo que essas mesmas pessoas demonstraram durante a pandemia não ser uma de suas prioridades.

Hoje não existe moral alguma de certos setores da sociedade brasileira para se falar de respeito à vida e sua defesa, depois de tanto banalizarem a vida em prol de suas próprias limitações cognitivas e paixões políticas. Para esse tipo de gente eu só consigo expressar meu mais sincero nojo, e trazer comigo a certeza de que se Jesus entre nós concordasse com esse tipo de gentinha, ele seria tão gentinha e boçal quanto, o que me lembra da frase difundida nas redes sociais de que “Jesus é muito bacana, mas o que estraga é sua base de fãs”. Nem o demônio seria capaz de tamanha insensatez, crueldade e falta de noção como esse tipo de gente.

Agora convido o religioso que é contrário ao aborto legalizado a fazer o mesmo exercício de empatia. Começo dizendo uma coisa que deveria ser muito óbvia: sua visão de mundo baseada na religião não é universal e definitiva. Chamar alguém que é favorável a legalização do aborto de “assassina” é uma sentença absolutamente vazia para quem é seu alvo, porque essa pessoa não considera que já exista ali um indivíduo que está sendo assassinado. Normalmente, a maioria das pessoas que defendem a legalização do aborto a defendem até certo período de gestação (já explico), e dizer para essas pessoas que elas estão matando uma pessoa num aborto, soa para elas como uma tremenda bobeira baseada exclusivamente na crença religiosa de que a vida humana já existe na concepção. Qual é a explicação que encontram pra isso? Que essa ideia só existe para controlar mulheres e exigir que sejam mães quando não gostariam, exercendo assim um controle sobre a sexualidade feminina.

Existem pessoas que defendem o aborto em qualquer tempo de gestação? Deve existir, mas certamente são a minoria, e a maioria não defenderia isso. Tem muita gente também que só defende bandeiras por defender, com pouca base e mais desgosto pelo outro lado que qualquer outra coisa? Certamente! Mas isso vale pros dois lados, não é? Mas por qual razão pessoas não religiosas defendem a legalização do aborto até certo período da gestação?

Para essas pessoas, o feto só pode ser considerado um ser humano, e, portanto, dotado de direitos, quando algumas etapas de seu desenvolvimento já estão cumpridas. Aqui estamos falando de ondas cerebrais e funcionamento pulmonar, por exemplo. O Conselho Federal de Medicina se posiciona favorável ao aborto como escolha da mulher até o terceiro mês de gestação, considerando, entre outros fatores, que o risco para a mãe nesse período é menor, e que o Sistema Nervoso do feto sequer está formado. Na quarta semana, por exemplo, o feto possui o tamanho de um grão de arroz. Nem dor o feto é capaz de sentir nesse momento.

É apenas após o fim do primeiro trimestre de gestação que algumas mudanças mais elaboradas começam a ser observadas, e quando o bebê de fato se forma, já com função respiratória, muscular e auditiva. Esses argumentos obviamente não significam um consenso entre os médicos, assim como os argumentos religiosos não criam necessariamente um consenso contrário ao aborto. Mas o fato é: você não irá sensibilizar quem é favorável à legalização do aborto chamando-o de assassino, porque isso não fará o menor sentido para essa pessoa. Por que o aborto deveria ser crime, fazendo com que inúmeras mulheres se submetam a abortos clandestinos, morrendo ou tendo maiores complicações, para fugir de uma lei que defende uma forma de vida ainda não desenvolvida como um ser humano? Para quem pensa assim, o argumento contrário de defesa á vida soa contraditório, e essas pessoas também se consideram justas e boas defensoras da vida.

Creio que podemos concluir que o debate sobre o aborto no Brasil é marcado por uma completa entrega de argumentos ao vazio, porque as premissas envolvidas partem de lugares absolutamente diferentes, de bolhas distintas, e ninguém parece interessado em dialogar para tentar estabelecer algum tipo de harmonia que faça com que esse assunto não desestabilize tanto o convívio social. Ter razão parece importar mais do que construir uma sociedade mais cidadã e em paz. Não só ter razão, mas poder ter a quem sentenciar como errado, como vilão.

Infelizmente estamos distantes de um entendimento em que ambos possam compreender que a intensão do outro não é necessariamente negativa, embora oposta, fazer uso disso para se chegar a algum lugar.

O que eu defendo e penso que poderia ser uma solução? Sou favorável ao aborto legalizado até o terceiro mês de gestação, que a mulher tenha esse direito sem maiores explicações, mas que tenhamos uma sociedade que trabalhe para que nenhuma mulher precise abortar. O que isso significa na prática? Significa que ser favorável ao aborto legalizado não significa banaliza-lo, ou trata-lo como método contraceptivo (algo que deveria ser fundamental como autocrítica progressista em sua linha argumentativa), ignorando os efeitos psicológicos e os riscos de um aborto, e até os efeitos psicológicos de ter que cogitar passar por esse procedimento por inúmeras razões que deveriam ser o principal alvo.

Sei que a perfeição seria inalcançável, mas uma sociedade que tivesse o aborto legalizado, mas tendo como prioridade politicas educacionais e de saúde pública sobre métodos contraceptivos e planejamento familiar, uma sociedade em que todos se unissem para não permitir que mulheres fossem estupradas, entre outras coisas, poderia tornar a legalização do aborto quase um artigo de luxo no ar. Uma sociedade em que mulher nenhuma engravidasse sem poder e querer ser mãe.
Acredito que isso possa ocorrer? Só se eu fosse cego ao debate público brasileiro. O grau de maturidade e união para isso me soa infelizmente utópico, até porque muitos teriam que ser capazes de abrir mão de suas crenças de razão e se unir ao que é diferente por uma responsabilidade social. Ter o aborto legalizado, mesmo que só como possibilidade, seria visto como uma afronta por alguns, enquanto outros seriam contrários aos métodos contraceptivos, outros diriam que planejamento familiar é um risco para a liberdade sexual e poderia ser usada como forma de controle do patriarcado, teríamos novas brigas intermináveis sobre como isso deveria ser promovido, sobre quais os melhores métodos para lidar com abusos sexuais, etc.

Novas polarizações seriam criadas de maneira pouco harmoniosa para que a premissa de ter razão continuasse como prioridade. Enquanto isso, permaneceremos num debate macabro com vidas sendo perdidas, independentemente do que cada lado priorize como vida, o que nem sequer deveria ser a questão. Basicamente, se dois lados querem guerra, pode-se tirar-lhes as armas de fogo, que se matarão com pedras!

O debate sobre a descriminalização do aborto (como muitos outros) no Brasil é como uma casa que precisa urgentemente de pintura, mas seus dois moradores não conseguem chegar num acordo, porque um quer todas as paredes verdes, e o outro quer todas as paredes amarelas. Enquanto isso a estética da casa permanece terrível, enquanto um joga tinta no outro, e ninguém parece disposto a abrir mão de algumas paredes para o outro para que possam viver em paz, e ninguém parece disposto à propor o azul.

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