A doença e seu rei ( Parte 1), por Renan Portela

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A doença se espalhava por todas as terras de maneira assustadora, fazendo com que as diferenças culturais dos reinos fossem amplificadas para qualquer observador razoavelmente atento. Começou vitimando alguns moradores de um feudo local no distante, imenso, populoso e poderoso Reino de Ming.

Ming era considerado o segundo reino mais poderoso das terras conhecidas. Vivia em destacado e constante crescimento. Por mais que o autoritarismo de seus nobres fosse amplamente questionado por outros reinos mais liberais, o comércio elevou Ming a um posto de relevância enorme. Isso sem considerar seu proeminente exército que era muito temido, tanto por suas armas quanto pelo número de guerreiros. Assim como outras terras, Ming tinha um passado sombrio que estava buscando deixar de lado para se modernizar e melhor se relacionar com outros reinos, gerando para si, em consequência, uma riqueza impressionante.

Alguns senhores letrados e curandeiros da região alertavam os nobres de Ming que medidas urgentes deveriam ser tomadas para que a doença não se alastrasse. Os dados mostravam que a doença era transmitida de pessoa pra pessoa, e um isolamento dos infectados e de quem teve contato com eles parecia um modo sensato de lidar com sua proliferação.

Preocupado com o caos social e econômico, o rei de Ming demorou um pouco a agir, chegando a perseguir os estudiosos que o alertavam, segundo alguns comentavam. Porém, vendo que as baixas para a doença cresciam e que poderiam tomar todo o seu reino e atingir outros, o rei decidiu isolar o feudo inicial e restringir de maneira dura a circulação de pessoas para evitar que seu povo morresse e que as consequências enfraquecessem seu reinado. Um controle rígido foi estabelecido, tanto para conter a circulação de moradores do reino, quanto para evitar a entrada de forasteiros. Porém, comerciantes de Ming e visitantes de outros reinos já haviam levado a doença para os reinos vizinhos, o que gerou uma cadeia de transmissão da doença que deixava em alerta todos os povos.

Uma reunião foi convocada com letrados nas ciências relacionadas à saúde que chegavam de todas as partes. Estudiosos de vários reinos se encontraram para discutir sobre a doença e determinaram que era preciso transmitir a mensagem de que a melhor maneira de evitar a doença era restringir a circulação de pessoas por um tempo, e que todos que precisassem sair deveriam tomar medidas de cuidado, como uso de máscaras, higiene e distanciamento. Deveriam alertar os reinos de que essa era a única maneira de lidar com a tal doença desconhecida, para que os prejuízos fossem minimizados, porque algum prejuízo era inevitável.

A doença aparentemente matava uma parcela pequena dos infectados, porém, era transmitida de maneira super rápida e fácil. Sendo assim, se um número grande de pessoas fossem infectadas, o número de mortos seria altíssimo, e não haveriam recursos para cuidar dos novos doentes, gerando um colapso maior do que o isolamento social causaria. Mensageiros à cavalo foram enviados à todos os reinos conhecidos com essas recomendações.

No princípio muitos reis torceram o nariz, e alguns até levantaram questionamentos sobre uma possível culpa que o reino de Ming teria, além de outras teorias da conspiração super criativas. Isolar o seu povo por um período relevante de tempo geraria prejuízos na produção e no comércio. Valeria o risco para lidar com a escassez futura? Fora que as tensões sociais se fortaleciam nos últimos tempos, com muitos reis sendo questionados e até destratados por seu próprio povo. Eram tempos difíceis para os reis, com uma alarmante crise de representatividade e legitimidade de suas coroas. A descrença do povo com seus líderes parecia constante e era motivo de muita preocupação nos palácios.

E se a doença não viesse com a força que os mensageiros enviados pelos especialistas alertavam? O povo sentiria que as medidas foram exageradas e que o rei era um tirano, diminuindo por ele a simpatia que ele buscava conquistar de seus súditos. E se tomando as medidas sugeridas a impressão do povo sobre a doença evitada fosse a mesma, já que não teriam a real dimensão do problema evitado e de como seu rei estava cuidando deles? Acreditariam no seu rei e nos estudiosos? Será que o povo acreditaria que a doença realmente era grave e que foi o certo a se fazer, ou achariam que o rei se aproveitou disso para aumentar seu poder e trancafia-los em casa como em uma prisão?

Porém, notícias de Ming mostravam que o isolamento do povo estava começando a surtir efeitos positivos, diminuindo o contágio, e que o povo do reino parecia compreender e respeitar as medidas adotadas, o que poderia conter a doença e possibilitar que a vida voltasse o mas rápido possível ao normal. A desconfiança com o reino de Ming ainda era presente e sua credibilidade era questionada, só que a doença começou a se mostrar ainda mais presente nas ruas dos reinos em que ela chegara, fazendo com que a maioria dos reinados passassem a seguir as recomendações e tratar a doença com a seriedade que merecia, enquanto os corpos infelizmente começavam a ser contabilizados aos montes.

Logo ficou claro que os reinos que mais rápido conseguiam dialogar com seu povo sobre a necessidade de isolamento social, e que mais rápido tomavam medidas rígidas de controle, mostravam melhores resultados. Um grande exemplo disso foi consagrado Reino de Beer, em que sua poderosa rainha só crescia em popularidade pela forma com que conduzia a crise, muito por conta também de seu povo sério e determinado com as recomendações. Outros reinos demoraram mais para tratar a doença com seriedade e firmeza, como os tradicionais reinos de Massa e El Clássico, onde a quantidade de mortes chocou todos os reinos que lhes prestavam solidariedade, enquanto até os nobres se desculpavam e começavam a lidar melhor com a situação. Outros reinos também tiverem alguns atrasos iniciais, pedidos de desculpas e/ou nobres sendo contaminados. O Reino de Elizabeth e de Ratatouille rapidamente se uniram aos esforços globais para tentar conter a doença.

Por todas as terras conhecidas os protocolos de segurança eram enfim empregados, com uma ou outra diferença óbvia ao se considerar as particularidades de cada região, sua estrutura e seu povo. Raros eram os reinos que negligenciavam a doença, normalmente pequenos reinos isolados e até considerados pouco relevantes, com reis pitorescos, para dizer o mínimo. Um desses reis recomendou ao seu povo, por exemplo, que lidasse com a doença bebendo Vodka.

Os olhos do mundo se voltaram para o Reino de Big Mac. Big Mac era o reino mais poderoso do mundo, admirado por muitos e visto com desconfiança ou antipatia por outros. Fato é que Big Mac era o reino mais rico, influente e com maior poder militar, comandando por um rei controverso e que dividia opiniões acaloradas. O rei Orange inicialmente tratou a doença com pouca seriedade, e defendeu publicamente que uma poção já conhecida para combater outras doenças seria a solução milagrosa para lidar com a atual. Porém, o reino de Big Mac era um reino em que os senhores de terra (que em sua maioria defendiam o isolamento proposto pelos especialistas) não eram tão reféns ao poder do rei como em outros reinos.

Outra particularidade de Big Mac é que a imagem é algo muito valorizado por lá, e o rei é cercado de conselheiros capazes de lhe orientar num sentido mais coerente. O atraso de seriedade fez com que o número de mortes explodisse em Big Mac, mas o rei (embora ainda se manifestando de maneira controversa em algumas ocasiões) se viu forçado a rever posicionamentos e fazer o que fosse necessário para evitar uma calamidade ainda maior.

Vamos então na direção sul, onde um reino muito curioso se encontra. O Reino de Madeira é uma vasta extensão de terra riquíssima, com clima agradável e imenso litoral. Madeira foi durante muito tempo considerado o “Reino do Futuro”, por todas as suas riquezas naturais, sua imensidão territorial e populacional, potencial esse que nunca conseguiu concretizar. Poucos tinham acesso a uma vida digna, a violência tomava os vilarejos como tempestades, e o povo pouco valorizado era em sua maioria ignorante e refém de uma educação precária, embora muito conhecidos por sua capacidade de fazer festas, se destacar em jogos populares e fazer boas piadas na rede mundial de mensagens. Madeira era um reino rico, porém com uma desigualdade social escandalosa. Muitos miseráveis se viam diante de uma nobreza corrupta que vivia no luxo por sua conta. O reino vivia uma última década complicada e uma crise que dividia seu povo por paixões políticas.

O reinado anterior havia sido marcado por inúmeros escândalos em Madeira. Parte do povo estava traumatizada pela decepção com a esperança que depositaram no popular Rei Barba, que passou a ser odiado por muitos de seus súditos que queriam sua cabeça e estavam dispostos a conceder a coroa a quem se mostrasse forte o suficiente para conseguir destroná-lo, seja quem fosse, porque uma mudança era necessária. Por outro lado, muitos continuavam fiéis ao Rei Barba, e a bandeira vermelha de sua dinastia ainda era reverenciada, enquanto os opositores enxergavam nela um exemplo de crime e autoritarismo. Parte dos “barbistas” eram incapazes de acreditar nas acusações que Barba sofria, alegando que tudo não passava de uma conspiração para tirar seu trono.

Outros até entendiam que Barba não era inocente, mas que poderia ter sido vítima das circunstâncias, e até que talvez as suas alianças espúrias eram necessárias naquele momento para atender “um bem maior”. Diziam que Barba se preocupava com os pobres, e que foi o rei que mais conseguiu gerar oportunidades e distribuir grãos e prata, mesmo que para cada grão dado para um súdito ele tivesse que desviar dois grãos a mais do que declarava para o próprio bolso, e a cada prata, seis iam para o bolso de aliados poderosos que poderiam manter Barba no poder.

Foi então que, se aproveitando dessa divisão, um antigo integrante do exército de Madeira, com histórico duvidoso, começou a fazer barulho pelas vielas de Madeira e adquirir aliados. O capitão Bozo fazia um discurso de moralidade que parecia encantar parte considerável do povo, tentando se vender como diferente do reinado barbista. O povo carente parecia esquecer que já tinham visto esse discurso de moralidade anteriormente. Bozo prometia alinhar Madeira com Big Mac, incentivar a lealdade ao reino, matar bandidos, aumentar o acesso à espadas para que o povo pudesse se defender dos criminosos violentos, ser mais liberal nas questões comerciais, não fazer as alianças criminosas do antigo reinado, e trazer de volta tanto a influência do clero, quanto a influência do exército para o poder, entre outras coisas.

A divisão se acentuava no Reino de Madeira e seu povo estava numa guerra ideológica que parecia inevitável. Nas tavernas e nas mesas das casas a regra era uma só: ou está comigo ou é meu inimigo.

Muitos enxergavam o capitão Bozo como única salvação possível, uma espécie de herói enviado para libertá-los do reinado que desprezavam. Do outro lado o povo temia que Bozo recriasse o reinado militar que imperou em madeira no passado, em que acusavam opressão sistêmica e cruel. Diziam que Bozo inflamava o povo com falas grosseiras e que denunciavam seu caráter duvidoso, que era um homem despreparado e perigoso.

Com a queda de Barba o povo acentuava a guerra do trono de madeira. Alguns membros da nobreza mais moderados até tentaram se colocar como opção ao trono, mas a conjuntura estava decidida: ou o povo aclamava o herdeiro político de Barba e mantinha a dinastia barbista no poder, ou aclamavam Bozo com a finalidade de “mudar isso tudo que tá aí”.

Muitas figuras influentes da sociedade não acreditavam que o povo encarasse com seriedade a possiblidade de um reinado bozista, mas talvez não percebessem que o desgosto do povo com o antigo reino era uma força crescente.

O povo de Madeira se dividia em quatro partes. A primeira parte era formada pelos ainda seguidores fiéis da linhagem barbista e de outras pessoas que não gostavam mais tanto do barbismo, mas enxergavam em bozo um perigo maior. A segunda parte unia os que já eram leais ao antigo capitão, e os que desconfiavam, mas enxergavam a manutenção da linhagem barbista com maior receio. No fim das contas a segunda parte venceu, e Bozo foi coroado rei.

(Continua)

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