Em plena década de 20 do século XXI, ainda temos a mesma retórica da mesma década do século passado. No distante 1927, o cineasta alemão Fritz Lang apresentava “Metropolis” como um bardo do temor de homens às máquinas, das insensibilidades das causas humanas ante a visão maquínica de um mundo moderno que ameaçava substituir carne e osso por metal. Neste 2023, o britânico Gareth Edwards (“Rogue One”, “Godzilla”, “Star Wars – Os Últimos Jedis”) reaviva a chama da luta entre homens e máquinas em seu longa metragem “Resistência” (The Creator), repaginada com o empoderamento dos seres robóticos por um elemento cada vez mais presente em nosso cotidiano – a incensada e repudiada Inteligência Artificial. Principal artéria tecnológica do tecido social de nosso século até aqui, é ela – a IA – quem protagoniza o filme de Edwards, impondo na película um confronto épico, filosófico e, a certo ponto, romântico à história.
A trama não é complexa nem, a princípio, inovadora. Contrastando com os rompantes e exageros criativos do recente cinema de ficção, a história criada também por Gareth Edwards – roteirizada a quatro mãos com Chris Weitz, de “Um Grande Garoto” (2002), “Sr. & Sra. Smith” (2005) e “Rogue One: Uma História Star Wars” (2016) – concentra-se em uma ideia bem objetiva. Ambienta-se em um mundo futuro em que o lançamento de uma bomba nuclear sobre Los Angeles gera um violento conflito entre humanos e ciborgues de Inteligência Artificial. Nesse cenário, o ex-agente (humano) das Forças Especiais Joshua (John David Washington, de “Tenet”) é recrutado para a insidiosa missão de exterminar O Criador, a mais poderosa das armas da Inteligência Artificial. A missão torna-se melodramática quando Joshua descobre que O Criador não é um ente cibernético monstruoso ou uma soturna figura aterradora: ele tem a singela aparência de uma criança.
Há muitos sentidos possíveis para se conceber as luminescências dessa história. O nome Joshua dado ao protagonista, de origem hebraica, é uma forma anglicizada do nome hebraico Yehoshua ou Yeshua, que também é a base para o nome Jesus em português e outras línguas, significando “Deus é a salvação”. Esse contexto implicitamente messiânico do herói humano do filme contrapõe-se com sua missão em exterminar justamente o Criador, personificado em um menino criado por Inteligência Artificial e dotado de poderes como o controle de todos os dispositivos tecnológicos, considerado uma arma viva capaz de destruir o mundo.
Nessa cosmogonia reversa, em que o messias se contrapõe ao apocalipse, Joshua vive ainda os estilhaços de um torturante drama do passado: durante o bombardeio atômico em Los Angeles, ele havia perdido sua amada Maya, prestes a conceber seu filho. Uma projeção do filho perdido na figura enigmática do Criador-menino provoca múltiplos gatilhos e oscilações na percepção de Joshua sobre sua missão, e é desse conflito existencial entre um executor e seu enlevo passional com seu alvo que florescem todas as questões sensíveis do filme.
Gareth Edwards revela um sentido estético quase que assumidamente pautado pelo imaginário dos clássicos do gênero. Há um quê do “Blade Runner” de Ridley Scott (a similaridade e o conflito entre seres artificiais e humanos), do “Exterminador do Futuro” de James Cameron (as batalhas épicas e cenas de ação com as máquinas); do obscurantismo streampumk da “Duna” de Denis Villeneuve (um mundo sombrio, poluído e mecanizado); do “Eu, Robô” com Will Smith (o excelente John David Washington é também um protagonista negro a reverter o apagamento de sua etnia na ficção futurista) e daquele exuberante “Inteligência Artificial” de Steven Spielberg (o também menino Haley Joel Osment encarnando a tecnologia numa forma humana) na “Resistência” edwardiana. Nada disso, porém, tira o poderio autoral do idealizador da empreitada: é na direção firme dos atores, que seguram com firmeza as nuances de seus personagens; na concepção exuberante de sua direção de arte e fotografia; no delicado equilíbrio do uso de efeitos especiais perfeitos em qualidade e dosimetria que Gareth encontra campo para tornar o filme tanto perturbador quanto reflexivo; tanto visualmente impecável quanto sensível e tocante.
“Resistência” é uma bela obra de ficção cinematográfica. Mas é também uma fábula (quase) real sobre o tempo em que vivemos – entre guerras, bombas, tecnologias, inteligência artificial…mas também uma profunda sensibilidade no pensamento sobre os sentidos da nossa própria existência!
HELIO RICARDO RAINHO é escritor, autor/diretor teatral, crítico cultural e pesquisador acadêmico