Livro Os Hospedeiros da Morte como metáfora da catastrófica política atual

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Por Tiago Toy

Os Hospedeiros da Morte foi escrito por F. C. Edwin como sendo um livro único, mas devido ao seu número de páginas a editora tomou a decisão assertiva de transformá-lo em dois volumes. E, como tive a oportunidade de lê-lo na íntegra, garanto que o livro 1 – Contaminação é apenas a deliciosa entrada do prato principal, o livro 2 – Mutação, que será lançado em breve pelo Grupo Editorial Coerência. Não é a mais fácil das tarefas falar do primeiro livro sem estender a análise para a complexidade do segundo, mas tentarei me ater exclusivamente ao antepasto.

Edwin inicia sua história apresentando Lucas e Nicole, um jovem casal de namorados que acaba de sair do cinema após assistir a um icônico filme de terror nacional. Eles discutem sobre os elementos do filme enquanto observam os cartazes dos próximos lançamentos. O horário já está próximo do fechamento do shopping e, quando eles descem para ir embora, se deparam com as portas trancadas e uma estranha movimentação do lado de fora, protagonizada pela força policial e por curiosos que se acumulam gradativamente para saber o que está acontecendo. No lado de dentro, assim como o casal, um grupo de pessoas, entre clientes e funcionários, também está preso e anseia por uma explicação vinda do exterior. Mas, apesar da indignação e protestos de todos os impedidos de sair, nada é esclarecido, o que só aumenta a tensão no hall de entrada do Imperial Shopping Center.
No meio desse cenário, acometido por uma crise de asma, Lucas sobe para o banheiro do segundo piso, no intuito de usar sua bombinha inaladora sem ser visto por Nicole. A namorada o acompanha, mas espera do lado de fora do toalete, enquanto o rapaz adentra sem explicar o que está indo fazer. Sozinho, Lucas é atacado e arranhado no braço por um homem que se encontra em um inexplicável estado hemorrágico. E logo, de volta ao hall, o rapaz passa a sangrar pelos orifícios da face e não demora para começar a perder sua humanidade, tornando-se agressivo e irracional. É com essa premissa que a autora estreante, grande fã de livros e filmes de terror, concebe o visceral e metafórico Os Hospedeiros da Morte – Livro 1 – Contaminação.

Está mais do que provado que o gênero terror atrai muitos fãs no mundo todo. Dentro desse gênero, temos o subgênero zumbis e, mais recentemente, o subgênero infectados, que são criaturas que não estão mortas como os zumbis, mas que apresentam o mesmo instinto violento e ausência de racionalidade. Não se pode negar que essas criaturas peculiares, que de uma hora para outra deixam de ser humanas — e as causas podem ser sobrenatural, viral, parasitária, em função de uma substância química ou radiativa, ou uma infinidade de outros fatores — para se transformarem em mutações agressivas e disseminadoras da infecção, causam um fascínio no público que não é de hoje. Em Os Hospedeiros da Morte surge uma subcategoria de infectados, que são os hemorrágicos. Eles não estão mortos: estão doentes, portadores de uma terrível e desconhecida infecção que anula sua essência humana. E, agindo por instinto, passam a atacar as pessoas saudáveis, colocadas de forma arbitrária em uma quarentena. Os hemorrágicos, definitivamente, são os vilões. Mas não são os únicos.

Concebido não apenas com a intenção de divertir os fãs do gênero, mas de levantar algumas relevantes críticas sociais para os tempos difíceis que estamos vivendo (principalmente no quesito saúde pública), o livro apresenta uma equipe de agentes de um instituto secreto liderada pelo norte-americano frio e desumano Steve Wilkinson, que falha miseravelmente em sua tentativa de proteger as pessoas saudáveis e conter o caos. Hoje, na vida real, enfrentamos uma pandemia, mas as pessoas que estão no comando definitivamente não estão aptas a tomarem as decisões corretas. Wilkinson envia para o shopping seus soldadinhos de chumbo para executarem suas decisões errôneas e egoístas, colocando a vida de pessoas inocentes em risco — e sem peso na consciência, desde que sua própria sujeira seja varrida para debaixo do tapete. Numa analogia inversa à situação presente, em que Wilkinson manda trancar o shopping enquanto que em nossa realidade testemunhamos o descaso quanto à prevenção da pandemia e consequentemente o crescimento dos casos de Covid-19, a narrativa de Edwin é um desdobramento quase fiel dos tempos atuais. E, cá entre nós, espero que continuemos no quase. Epidemia global, depressão econômica, gafanhotos, ciclones… Dispenso zumbis hemorrágicos famintos.
Mas não são apenas vilões desumanizados, e posso me referir tanto aos infectados quanto a Steve Wilkinson, que o público que procura por esse tipo de diversão — e por que não dizer reflexão? — quer ver ao abrir um livro, uma HQ, entrar num cinema ou mesmo ligar a TV. A trama muitas vezes se volta para a individualidade dos personagens não-infectados nesse inferno de sangue, propondo-se a analisar o comportamento humano perante esse tipo de situação tão extrema e desoladora. O livro apresenta aos poucos algumas dessas pessoas que se veem inseridas num contexto de absoluta desordem, lutando por se manterem sãs num limitado pedaço de mundo dominado por outras pessoas que, na perda da própria humanidade, querem passar adiante o mesmo destino que tiveram.

Fora as desafortunadas pessoas em quarentena no interior do shopping, temos na linha de frente dessa operação insólita o Dr. Moisés Viana, que se contrapõe às ordens calculistas de Wilkinson — muitas vezes cumprindo-as à contragosto — e que acaba sendo o coração em uma babel costurada por sangue e desespero na qual os mais desalmados agem apenas com a razão. Temos também Elena, a jovem mãe que se encontra incapaz e desesperada no lado de fora, limitada a acompanhar com os olhos a evolução do perigo iminente no qual os filhos estão submetidos. E, autoinserida nesse episódio propício, temos ainda a personagem Rachel Nunes, uma ambiciosa repórter de TV que identifica na caótica circunstância uma chance de ser promovida na carreira. Outro personagem interessante cuja função na narrativa será explorada no segundo livro é Magrão, que abrirá margem para uma importante discussão moral e evidenciará o lado mais atroz de Wilkinson.
Não faltam na natureza perturbadora dessa narrativa situações de grande impacto ao leitor, com cenas frenéticas, intensas, sangrentas e bastante gráficas. A violência que passa a assolar e comandar a mente dos infectados é descrita de forma brutal, não poupando o leitor de um banho de sangue com direito a carne rasgada por mordidas e arranhões, órgãos saltando aos olhos e ataques violentos por tudo quanto é lado, numa história que mostra sem dó a que nível chega a barbárie que pode causar um ser humano.

Além disso, as críticas implícitas não param por aí. Assim como o clássico Despertar dos Mortos, do cineasta americano George Romero, Os Hospedeiros da Morte também apresenta sua dose considerável de crítica à sociedade de consumo. Só que, ao contrário dos personagens do “pai dos zumbis”, que após a zumbificação retornam ao shopping como se o próprio local fosse um ímã que os atraísse, os personagens de F. C. Edwin não querem mais estar lá. Pelo contrário, eles anseiam avidamente por sair daquele famigerado centro de compras, mas são obrigados a permanecerem lá dentro, numa metáfora irônica de que, uma vez cruzado as portas de entrada do consumismo, você se torna prisioneiro de hábitos modernos dos quais, mesmo querendo, não consegue mais se livrar. O consumismo nos mastiga. O capitalismo nos engole. No fim, somos apenas restos insípidos sem mais nada a oferecer.

Independente da possível causa da doença que se alastrou pelo Imperial Shopping Center ou de que forma a situação irá se resolver — se é que os limites ultrapassados pelos terrores criados por F. C. Edwin possibilitem uma solução—, temos de um lado os não-infectados em busca de sobrevivência e do outro as criaturas acéfalas e violentas, que nada mais são do que estereótipos da própria condição moralmente falha da sociedade atual. Você poderá sacar tais críticas se estiver atento às entrelinhas, ou pode ler apenas na superfície e mesmo assim se divertir com as cenas viscerais e a situação claustrofóbica de se estar trancafiado num local que oferece um perigo real, cruel e sem chance de fuga.

Seja qual for a sua intenção de leitura, Os Hospedeiros da Morte é um livro obrigatório para os fãs do gênero, que com ele irão experimentar sensações de medo, terror, revolta, indignação e, sobretudo, se questionar sobre quem são os verdadeiros vilões.

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