quinta-feira, maio 9, 2024

Quem foi João do Rio, o jornalista que representava a alma carioca e que morreu há exatamente um século

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Há um século, 100 mil pessoas foram ao enterro de Paulo Barreto, o João do Rio, se despedir do repórter e escritor mais querido da então capital federal.

Aos 39 anos, o cronista sofreu um infarto fulminante em 23 de junho de 1921, dentro de um táxi, em uma rua no bairro do Catete, Zona Sul.

O enterro dele parou o Rio, em uma caminhada do Centro ao cemitério São João Batista, em Botafogo. Uma justa homenagem ao jornalista que criou um estilo ao deixar as redações e rodar a cidade em busca de reportagens.

“É o primeiro a inventar a reportagem de rua. Até aquele momento. Isso no século 20, não havia um repórter que saísse da redação (…) O João do Rio teve a ideia de ir pra rua e verificar in loco o que acontecia na cidade, principalmente nesse momento em que as transformações urbanas voltadas para ideia de civilização”, conta o historiador Antônio Edmilson.

Biografia

Filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática e positivista, e da dona de casa Florência dos Santos Barreto, João nasceu na rua do Hospício, 284 (atual rua Buenos Aires, no Centro do Rio). Estudou Português no Colégio São Bento, onde começou a exercer seus dotes literários, e aos 15 anos prestou concurso de admissão ao Ginásio Nacional (hoje, Colégio Pedro II).

Em 1 de junho de 1899, com 17 anos incompletos, teve seu primeiro texto publicado em O Tribunal, jornal de Alcindo Guanabara. Assinado com seu próprio nome, Paulo Barreto, era uma crítica intitulada Lucília Simões sobre a peça Casa de Bonecas de Ibsen, então em cartaz no teatro Santana (atual Teatro Carlos Gomes).

Prolífico escritor, entre 1900 e 1903 colaborou sob diversos pseudônimos com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió. Em 1903 foi indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde permaneceu até 1913. Foi neste jornal que, em 26 de novembro de 1903, nasceu João do Rio, seu pseudônimo mais famoso, assinando o artigo “O Brasil Lê”, uma enquete sobre as preferências literárias do leitor carioca. Sob essa máscara publicará todos os seus livros e é como ganha fama. Junto ao nome o nome da cidade”.

E é como João do Rio que assina o texto do magnífico álbum sobre o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, lançado pela Photo Musso em 1913. Ali divergiu de seu amigo e colega teatrólogo Arthur Azevedo, ao elogiar o pano de boca do Theatro, pintado por Eliseu Visconti, obra cuja concepção havia sido ferozmente atacada por Arthur Azevedo antes de sua morte, em 1908.

Paulo Barreto representou o surgimento de um novo tipo de jornalista na imprensa brasileira do início do século XX. Até então, o exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como “bico”, uma atividade menor para pessoas que possuíam muitas horas vagas à disposição (como funcionários públicos, por exemplo). Paulo Barreto move a criação literária para o segundo plano e passa a viver disso, empregando seus pseudônimos (mais de onze) para atrair diversos públicos e leitores. Foi diretor da revista Atlantida (1915-1920) e colaborou na revista Serões (1901-1911).

As Religiões no Rio

Entre 22 de fevereiro e abril de 1904, realizou uma série de reportagens intituladas “As Religiões no Rio”, que além de seu caráter de “jornalismo investigativo”, constituem-se em importantes análises de cunho antropológico e sociológico, cedo reconhecidas como tal, particularmente no tocante as quatro matérias pioneiras sobre os cultos africanos na Pequena África, que antecedem em mais de um quarto de século as publicações de Nina Rodrigues sobre o tema (além de que, a obra de Rodrigues ficou praticamente restrita aos círculos acadêmicos baianos).

Estudiosos apontaram semelhanças entre “As religiões do Rio” e o livro “Les petites réligions de Paris” (1898), do francês Jules Bois. Todavia, a semelhança parece estar muito mais na ideia geral (uma investigação sobre as manifestações religiosas minoritárias numa grande cidade) do que no plano da realização formal.

A série de reportagens despertou tamanha curiosidade que Paulo Barreto a publicou em livro, tendo vendido mais de oito mil exemplares em seis anos. A proeza é ainda mais impressionante levando-se em conta o restrito público leitor da época, num país com elevadas taxas de analfabetismo.

Alguns biógrafos criticam o cronista pelo fato de que, ao perceber o filão representado pela publicação de coletâneas (algo que se tornaria comum na segunda metade do século XX), Paulo Barreto tenha descoberto uma “fórmula” para inflacionar a própria bibliografia. Todavia, uma análise das coletâneas publicadas ao tempo de sua curta vida repele tal afirmação. Primeiro, ele fazia uma seleção dos textos que iriam ser publicados; e, segundo, os textos selecionados possuíam unidade entre si, concordante com o título geral da obra e previamente justificados por um parágrafo introdutório.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras em sua terceira tentativa, em 1910, Paulo Barreto foi o primeiro a tomar posse usando o hoje famoso “fardão dos imortais”. Anos depois, com a eleição de seu desafeto, o poeta Humberto de Campos, ele se afastou da instituição. Conta-se que, quando informada de sua morte, a mãe avisou expressamente que o velório não poderia ser feito lá, pois o filho não aprovaria a ideia.

 

João por ser negro e homossexual, era vítima de todo tipo de preconceito.

“Ele sofreu muito. Ele mesmo falou numa das crônicas que ele levava duchas de lama”, explica Cristiane D’Ávila, pesquisadora da Casa Oswaldo Cruz.

“Um homossexual negro. Imagina, que tem como meta principal ser dono de um jornal, em funções da situação de preconceito que ele viveu. Isso torturou muito João do Rio. Ele resolveu colocar como meta ser o dono de um jornal. E, pra isso, ele tem que ser um excelente repórter, um excelente jornalista”, conta Edmilson.

O Real Gabinete Português de Leitura herdou a coleção de quatro mil livros do jornalista, que desejava uma sociedade onde as mulheres pudessem votar, o divórcio fosse permitido e os homossexuais não sofressem preconceito.

Em 1920, Paulo Barreto fundou o jornal A Pátria (chamado ironicamente de A Mátria por seus detratores), no qual buscou defender os interesses dos “poveiros”, pescadores lusos oriundos em sua maioria de Póvoa de Varzim, e que abasteciam de pescado a cidade do Rio de Janeiro. Ameaçados por uma lei de nacionalização do governo brasileiro, que exigia que a pesca fosse exercida apenas por nacionais, e os obrigava a naturalizar-se para poder continuar na profissão, os “poveiros” entraram em greve.

A atividade de Barreto em prol da colônia portuguesa granjeou-lhe grande quantidade de inimigos, um sem-número de ofensas morais (“manta de banha com dois olhos” foi uma das mais leves) e até mesmo um covarde episódio de agressão física, quando, surpreendido enquanto almoçava sozinho num restaurante, foi surrado por um grupo de nacionalistas.

A morte de João do Rio


Obeso, Paulo Barreto sentiu-se mal durante todo o dia 23 de junho de 1921. Ao pegar um táxi, o mal-estar aumentou e ele pediu ao motorista que parasse e lhe trouxesse um copo d’água. Antes que o socorro chegasse, no entanto, ele faleceu, vítima de um enfarte do miocárdio fulminante.

A notícia de que João do Rio havia morrido espalhou-se por toda a cidade rapidamente. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido para o último adeus ao escritor que certa feita, sob o pseudônimo de Godofredo de Alencar, havia registrado sua opção preferencial pela diversidade:

Naquele 23 de junho, Barreto levou consigo os inúmeros pseudônimos que criou. Mas João do Rio (e da rua), vez ou outra parece voltar para nos ensinar diferentes maneiras de flanar por aí.

Que o digam escritores como Luiz Antonio Simas e Xico Sá, cujos trabalhos são visivelmente atravessados pela poética que um dia encarnou o dândi de chapéu e charuto.

“João do Rio é referência absoluta para quem quer começar a estudar a história das ruas do Rio de Janeiro. Para tentar entender uma história que não é oficial, a que está acontecendo no cotidiano, nos modos de vida que estão sendo incessantemente inventados pelas pessoas. Mais do que uma inspiração, ele é um disparador de uma série de reflexões que me instigam muito sobre a cidade”, introduz Simas, que deve ao próprio ofício de historiador tamanha aproximação.

O cronista cearense também admite ter bebido dessa fonte desde os primeiros passos na profissão de jornalista.

Os restos de João do Rio encontram-se sepultados em uma magnífica tumba de mármore italiano e bronze, erguida por ordem de sua mãe, no Cemitério de São João Batista, no bairro de Botafogo. Também por ordem de sua mãe, a biblioteca de João do Rio foi doada ao Real Gabinete Português de Leitura, onde ainda hoje pode ser vista uma placa comemorativa do ato. O túmulo de João do Rio é considerado um dos mais belos trabalhos de arte funerária no Rio de Janeiro e atrai muitos visitantes.

O nome Paulo Barreto batiza uma rua inexpressiva no mesmo bairro de Botafogo. Como apontou Graciliano Ramos, “a homenagem que lhe tributaram é modesta: ofereceram-lhe uma rua curta”. A Póvoa de Varzim, em Portugal, também deu o seu nome a uma pequena rua mesmo no centro da cidade, junto à Câmara Municipal. Em Lisboa, Portugal, o seu nome foi dado a uma praça onde se encontra um pequeno monumento em sua honra contendo as suas seguintes palavras: “Nada me devem os portugueses por amar e defender portugueses, porque assim amo, venero e quero duas vezes a minha pátria”.

João do Rio é patrono da cadeira número 34 da Academia Irajaense de Letras e Artes (AILA) ocupada pelo escritor e poeta acadêmico Agostinho Rodrigues, fundador da entidade, em 1993.

João foi e ainda é a cara do Rio e representa a boemia, a alma carioca e o símbolo de conhecer histórias, lugares, viver intensamente e curtir a vida e contar grandes histórias. João seria amado mesmo se vivesse nos tempos de hoje

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