Eu, Marielle Franco, mulher, preta, favelada, eleita vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, levei quatro tiros no dia 14 de março de 2018.
Era a expressão de alegria. Nosso país não suporta uma mulher com um sorriso largo e sincero. Aberto e franco. O Brasil é o país da misoginia. Marielle subverteu não só pelas origens pobre e negra, mas também por seu currículo, seu brilhantismo profissional e acadêmico. Sua subversão maior era o sorriso escancarado. Brasil que estupra mulheres indígenas e pretas. Sou filho e neto de tais mulheres. Desejo suas vozes ouvidas. O Brasil não respeita o ventre de um sorriso.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada no dia 14 de março de 2018, levei três tiros na cabeça e um no pescoço por um carro que me encurralou no Estácio. Como a música de Luiz Melodia: Se alguém que matar-me de amor, que me mate no Estácio, Bem no compasso, bem junto ao passo, Do passista da escola de samba, Do Largo do Estácio, O Estácio acalma o sentido dos erros que faço, Trago, não traço, faço, não caço, O amor da morena maldita domingo no espaço, Fico manso, amanso a dor, Holiday é um dia de paz… Os assassinos dispararam com uma submetralhadora. Queriam me executar para calar as minhas vozes: mulher, preta e favelada.
Eu já quero ser a segunda voz dela. Quero ser aquele que escuta. Como um velho, menos analista e mais antropólogo.
Peço permissão à ancestralidade feminina escravizada e violada nesse nosso torrão, a terra como Gaya, para ouvir Marielle. Desejo falar do lugar do feminino. Embora não possa incorporar o lugar de fala exclusivo dela. Desejo reunir forças para poder realizar esta homenagem. Somos seres simbólicos. É deles que marcamos o nosso compasso neste chão árido, seco, desértico e que machuca feito pelas dores de muitas mulheres. A terra é a simbologia mais antiga do feminino. Ela gira em torno do sol. E Marielle foi apagada antes de terminar a sua própria gira carregada de brilho e cheia de potência em defesa das mulheres faveladas. Das pretas. Ela lutava contra a perpetuação de um movimento de opressão cometido há séculos contra os pretos desde a colonização – a eterna escravidão que nos assombra cotidianamente. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava. Poderia uma mulher rir e celebrar? Sacralizar o riso, o corpo e a força do feminino é o meu desejo neste artigo. Tanto já foi dito a respeito de sua morte, sobre os assassinos, quem mandou matar que até hoje, no dia 02 de abril de 2021, ainda não sabemos quem mandou executá-la. Os dias passam. O tempo corre. E a imagem vai sendo apagada para que o esquecimento recaia sobre este crime político.
Eu, Marielle Franco, fui assassinada, os tiros vieram de repente com força e não restou tempo para reação, caí morta, perdi a minha vida em meio à barbárie.
Permaneço preso ao ensaio antropológico e mágico. Feito um ritual de despedida e com o desejo de que sua morte não tenha sido em vão como tantas outras. O momento mais forte veio com a lavagem do chão cheio de sangue. No local onde a mataram no Estácio. Foi uma limpeza feita com ervas. E tambores. Marielle era a terra fértil que ria e celebrava o direito de vida dado a todos pela constituição de 1988, promulgada após a redemocratização. Nossa miscigenação é o fruto de estupros coletivos e continuados de mulheres indígenas e negras por séculos. É o machismo reprodutor assassinando mulheres vandalizadas e matáveis. Pai perverso e assassino de filhos mestiços pretos, quase pretos. Marielle é o retrato perfeito de séculos de violações aos corpos femininos.
Eu, Marielle Franco, fui morta de forma brutal sem direito à defesa. Nasci com a marca da exclusão e com a certeza de que deveria permanecer calada, distante do jogo político feito entre homens misóginos e racistas. A política feita para poucos que lutam por seus negócios embolados aos prazeres espúrios. E certamente com muitas garotas de programa em suas festinhas regadas a comida, bebidas, entre outras coisas.
Permaneço no meu ritual vivenciando uma eterna despedida de um antropólogo que se despe e veste a roupa do cientista político para dizer que a morte de Marielle foi o fim de um sonho e um crime político com endereço para qualquer uma que se aventure a desafiar as oligarquias da cidade do Rio de Janeiro.
Eu, Marielle Franco perdi a voz, mas renasço em todas as mulheres pretas, pobres e faveladas que trabalham e enfrentam o cotidiano de opressão. A vida é circular. E a Terra é redonda e gira em torno do sol.
O ritual de despedida homenageou o sorriso largo de uma mulher potente, vibrante, capaz de no sorrir rodopiar as energias, realizando a gira no meio do chão de terra das favelas cariocas. E é deste sagrado sorriso que o país precisa girar para recuperar a sua força e potência.
* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ