TEATRO/CRÍTICA – “As Sete Vidas de Alva”: primoroso delírio de uma senhora atriz

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Em formato digital inovador, peça teatral sobre terceira idade comove e propõe reflexão

Por Hélio Ricardo Rainho

A fronteira entre o martírio e o delírio só pode ser derrubada por um artifício: a imaginação. É o que nos sugere a esfuziante Alva, uma mulher de idade avançada, confinada em um cômodo ermo, pouco espaçoso, que a desafia a recombinar todos os elementos visíveis e invisíveis numa costura de histórias pouco criveis que aspiram o “incrível”. Sob esse mote de transcendência e digressão trafega a trama de “As Sete Vidas de Alva”, a peça-filme com texto de Sidnei de Oliveira, direção dele e de Ramon Botelho, protagonizada por Anja Bittencourt. O novo conceito de teatralidade digital busca suprir o vazio dos palcos que o isolamento social devido à pandemia da COVID-19 trouxe ao mundo.

Num plano de cena ocre, em tons pasteis monocromáticos, surge Alva. Cabe a ela, literalmente, colorir com gestos e palavras a visão periférica da audiência. A quixotesca narradora declara aguardar alguns convidados para um chá, e nesse ínterim propõe-se a engendrar narrativas sobre seu passado. Uma tessitura de histórias envolvendo personagens curiosos (in)discretamente inspirados em homônimos célebres, incitando o espectador a envolver-se com romances insólitos, viagens tempestuosas, dores, prazeres, aventuras e heroísmos. Permeando suas narrativas com um séquito de gatos que a circula, Alva constrói passo a passo a sua alquimia: ela transforma sete vidas em setenta, e se embrenha pelos muros e telhados da noite escura de sua própria consciência. É uma gata lúdica, quiçá humanizada numa metamorfose kafkiana. Alva é uma especie de Barão de Munchausen de saias; uma “dona Quixote” burlesca e dramática em doses primas, e seus relatos/devaneios nos fazem lembrar de todos os relatos fantásticos que já ouvimos das tias, das vovós, das idosas de nosso círculo. Elas nos enchem de vida, de viço; espantam nossos medos e atiçam nossas crenças; mais que tudo: nos jogam no vendaval da vida com a cara e a coragem pra enfrentarmos o futuro a partir das fábulas cheias de lições de vida que nos apresentam. E pouco importa (e nunca nos importava!) se eram reais ou surreais, possíveis ou inverossímeis: a essência da vida dessas mulheres sobrevivia em nós justamente a partir do fio mágico das inconsistências!

O texto sensível e pontual de Sidnei Oliveira é o trampolim perfeito para o salto ornamental da montagem. Conjuga com precisão o paradoxo verdade-delírio que rege a trama, proporcionando uma montanha-russa de emoções: dá pra rir, dá pra chorar, dá pra ter medo, dá pra ter coragem. Mas fundamentalmente dá pra expandir a reflexão – cartada decisiva na cena final, onde se revela, então, a natureza do lugar onde Alva encontra-se. Algo que nos leva a refletir não mais sobre a casualidade de uma personagem de ficção, mas a toda uma realidade que nos cerca. Do acerto no texto e no tema à exegese na direção: encarando o desafio que um monólogo sempre propõe, Sidnei Oliveira e Ramon Botelho conseguem dosar a contento os momentos em que Alva desenha suas histórias riscando o proscênio com outros mais intimistas onde ela traz para si as reflexões de suas falas, sentada. Uma alternância de ritmos que quebra a monotonia e garante bom efeito dramático.

Luz atenta, som calibrado, figurino belo e funcional, inspirada trilha com um bolero envolvente, um cenário com efeitos criativos de elementos feitos em papel como um origami cênico.

Mas é Anja Bittencourt quem alavanca tudo; a cena, o drama, a trama. Atriz de excepcional presença de palco, Anja é mestra em um dos artifícios mais poderosos da criação teatral: o domínio da palavra. Sua articulação das falas de Alva traduz toda a imensa diversidade de emoções e sentimentos da personagem. Com requinte e maestria, a cada momento ela leva o espectador a delirar com seus sonhos, acreditar em seus desvarios, confiar em seus testemunhos, rir e chorar com sua emoção. Confiante, plena, cheia de vigor, a atriz simplesmente passeia em cena! De forma exuberante e arrebatadora, revela-se não apenas uma atriz madura e experiente, mas sobretudo uma artista capaz de mergulhar no fundo de sua própria alma para construir uma personagem, sem acomodar-se com seu próprio repertório, antes ampliando texto e cena com notória pesquisa de construção. Trata-se de uma atuação comovente e digna de nota, que vence o desafio do tema sofrido da peça, bem como o desafio da nova modalidade de encenação digital. A afirmação plena da artista em seu talento e em seu profissionalismo!

É bom que se diga que a realização de “As Sete Vidas de Alva” não é uma mera alternativa ou solução “apressada” para salvaguardar uma expressão artística (o teatro) agredida por uma fatalidade (a pandemia). Trata-se de um projeto cuja elaboração tem tal esmero que sugere, a todo tempo, sua própria verdade. É uma produção autoral e convicta, destinada a uma nova modalidade de execução cênica, independente de estar “safando a onça” dos tempos de isolamento. Com simplicidade e elegância, a cena teatral está toda ali, sem sucumbir à dialogia com a câmera, antes a desafiando a nuances primorosas, de cenário, figurino, luz e som. Um acerto em todos os sentidos, da execução técnica aos sentidos tecnológicos. Mérito de todos os profissionais envolvidos.

Se nos faltam certezas em meio à pandemia, uma se pode ter: o teatro sobrevive à luz de suas experimentações. E Alva está aí para nos mostrar que, apesar de tudo o que estamos vivendo, ainda se pode dizer: há algo valendo a pena!

SERVIÇO:

Peça teatral “As Sete Vidas de Alva” na íntegra, gravação realizada na Eco Som Studios, no dia 14/03/2021, com acessibilidade por legenda.

Acesso livre/gratuito 24h até dia 12/04

Acesso: Facebook Watch – https://fb.watch/4MLp3sRi7s/

FICHA TÉCNICA

Realização: Rotunda e Bambolina Produções Artísticas LTDA

Texto: Sidnei Oliveira

Direção: Ramon Botelho e Sidnei Oliveira

Atuação: Anja Bittencourt

Coordenação Geral: Ramon Botelho

Produção: Luiz Fernando Orofino

Assessoria de Produção: Gabriela Calainho

Cenografia: Gigi Barreto

Figurinista: Juli Videla

Iluminação: Letícia Guimarães e Livs Ataíde

Trilha Sonora: Lúcio Zandonadi

Programação Visual: Rafael Pascoal

Fotografia de Divulgação: Dalton Valério

Visagismo: Andreia Jovito

Controller Financeiro: Dudu Colombiano

Assessoria de Imprensa: Maria Fernanda Gurgel

Montagem e Operação de Luz: Fábio Schuenck

Cenotécnico e Contrarregra: Guilherme Xavier

Produção de acessibilidade: Conecta Acessibilidade

Catering: Daniel Lázaro e Théo Menezes

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