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O povo de rua, por Paulo Baía

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O rio traz uma imagem bonita pela representação do movimento, do desaguar das águas vindas de uma nascente seguindo o seu destino natural em direção ao mar. E quanto mais chuvas, mais volumosas se tornam essas águas. No entanto, o rio também carrega muita dor por ser o local preferido para o descarte de vidas. Como no caso da “Operação Mata-Mendigos”, na década de 60, no governo de Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro, para expulsar os moradores de um lixão. Desaguaram nas águas do Rio Guandu pessoas ainda vivas e outros tantos mortos. Foram despejados feito lixo pelo Departamento de Repressão à Mendicância (DERMEN). O tão chamado “povo de rua”, que ocupa os espaços públicos e os transforma em sua moradia.

Os desaguados pelo Estado como dejetos. Nada novo, diante de uma população excluída e que desde sempre foi descartada nos rios pelas forças de repressão, como uma prática de limpeza urbana. É o rio que desagua a dor e o sofrimento do “povo de Rua”, excluído, invisível, e que é atropelado pelos passantes nos centros urbanos do país.

Houve um aumento brutal, exponencial, da população de rua nas grandes cidades brasileiras com a pandemia de Covid-19. Chamar de “situação de rua” é uma atitude cínica, pois implica em imaginar ser uma questão temporal e não uma condição permanente. Podemos afirmar que temos um “Povo de Rua”, que se renova de geração a geração. Assim, prefiro me referir a estes seres humanos despossuídos, adoentados, marginalizados, como “Povo de Rua”. É o rio que expulsa e mata pela poluição os seus dejetos, expulsando o que não serve mais. Esses dejetos desaguarão em outras praias tendo cumprido seu destino certo – a morte prematura.

A pandemia trouxe uma série de invisibilidades que não conseguíamos enxergar em função da série de véus que são colocados cotidianamente em nossos olhos. Discutimos a partir das pautas lançadas pelos governantes e expostas pela mídia. A situação do “Povo de Rua” é gritante por estar excluído de qualquer política assistencial que tenha o foco na questão da crise sanitária na qual estamos submersos. A questão dos grupos prioritários para vacinação nem toca nesta questão, muito menos ao se tratar do auxílio emergencial. Estas pessoas dependem da ajuda de grupos assistenciais como as pastorais católicas, os grupos evangélicos, kardecistas – são grupos que trabalham com o conceito de caridade, realizam suas atividades para minimizar o quanto for possível a situação dessas pessoas.

Para os anarquistas, se trata de um trabalho solidário e de ajuda mútua. A diferença existe para os que praticam os atos, mas é indiferente para o “Povo de Rua”. No entanto, esses grupos de assistência cívica ainda são atacados, ameaçados e reprimidos pelas polícias particulares de empresários e de bairros ricos, além da atuação das Guardas Municipais e PMs dos municípios e estados. O “Povo de Rua” “atrapalha” o andamento das cidades, são barreiras em relação à questão estética e sanitária, atrapalhando os negócios.

Aqueles que se dispõem a alimentar e cuidar desses invisíveis, antes que sejam mortos e jogados em quaisquer rios de qualquer grande cidade brasileira – como dejetos poluentes de uma sociedade que não cuida sequer da sua própria população – são tão discriminados como os “Mendigos”.
É o “Povo de Rua” permanecendo marginalizado e ausente do olhar do Estado, da sociedade e dos indivíduos em geral, permanecendo preso ao não desaguar da vida nas águas doces, em volumes e histórias a não serem contadas. Por simplesmente não existirem.
É apenas “O povo de Rua”, sem lenço, sem documento, sem casa, sem água, sem direito à vida.

*Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

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