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CRÍTICA: Blade Runner 2049 – Uma obra-prima replicante

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blade runner2049

Hélio Ricardo Rainho, convidado especial do BLOG falando sobre o filme Blade Runner 2049.


“Se você tem memórias autênticas, você tem reações humanas verdadeiras”. A frase enigmática que o replicante “kafkiano” K. (Ryan Goslin), protagonista de Blade Runner 2049 (EUA, 2017), ouve durante uma interlocução sobre sua existência pode explicar muita coisa na retomada desse clássico cult contemporâneo. A avalanche de emoções e opiniões causadas pela continuação do filme oitentista de Ridley Scott nesta sua “versão Novo Milênio” traça um paralelo entre a autenticidade da obra original e a forma como o espectador reage ante o poderoso exercício estético do atual diretor, Denis Villeneuve.

O cinema sempre retratou, no universo da ficção científica, a dualidade ferrenha entre os domínios do homem e a insurreição das máquinas. Em Blade Runner os andróides são chamados “replicantes”, cópias com aparência humana idêntica. É desnecessário, aqui, listar-se o sem-número de obras onde homens e robôs disputaram espaço e existência nas telonas. O advento da revolução industrial e o avanço das tecnologias criaram campo para fomentar essa rivalidade na ficção durante longos anos. Até que a epidemia de internet que contaminou o mundo ampliou a discussão para outro espectro: a clássica visão do pensador Marshal McLuhan sobre “os meios como extensão do homem” trouxe, com a chamada “inteligência artificial”, um hibridismo entre robôs e humanos, indivíduos e andróides, sujeitos e ciborgues, tornando a distinção entre os “opostos” cada vez menos óbvia e quase improvável. O que antes era uma dualidade homem-máquina passa a ser, nos tempos atuais, uma quase unicidade.

E é disso que Blade Runner já falava na versão seminal em 1982, e volta a abordar agora, em 2017. Só que, neste caso, de uma forma ainda mais retórica. Há duas gerações de seres pré-criados, sendo a mais antiga perseguida pela que a sucede. A que é perseguida sofre todas as agruras dos discriminados de nosso mundo real. Chegam a ser chamados sintomaticamente de “pele falsa”, uma provável analogia com as questões raciais que tanto conhecemos.
Uma das cenas mais impactantes do filme é o cenário de destruição e escombros de uma Los Angeles que vira, sob esse amontoado de lixo e sucata dos prédios devastados, uma espécie de “morro” sobre o qual habitam os replicantes da primeira geração. Sim, é inevitável a associação entre morros, favelas e favelados para nós, latinos, diante da imagem contundente que toma conta de toda a tela. Retrato, também, de países devastados pela guerra e pela fome no mundo atual.




Sob este cenário de angústia e caos, o introspectivo K – um replicante avançado de um modelo nomeado Nexus 8 – precisa conviver com o dilema existencial de não apenas executar sua tarefa cabal de eliminar os replicantes antigos da falida Corporação Tyrrell, mas também mergulhar em uma aventura pessoal em busca de sua própria origem…afinal, humana ou sintética, a bem da verdade?!

Blade Runner 2049 é um filme sob pressão. Ele nasce com vários desafios. Precisa ser veloz e eletrizante como suas dezenas de pares do gênero sci-fi; precisa encaixar sua nova trama na trama exitosa que o precedeu; precisa recuperar o clima de distopia e apocalipse urbano da versão anterior; precisa justificar a volta de Harrison Ford como um Deckard que virou personagem-símbolo do filme; precisa nos trazer um novo replicante com o carisma de Rutger Hauer praticamente roubando o primeiro filme no papel de Roy; precisa recuperar o clima de romance noir entre Deckard e Rachel (Sean Young) na primeira versão.

E como Villeneuve se defende de tudo isso??? Com atitude blasé e requinte de autenticidade!

O grande acerto de Villeneuve é fugir de todas essas provocações e, ao mesmo tempo, manter o nível lá no alto. Ele parece olhar com desdém as exigências e simplesmente flanar por sua trama, seu intento, sua arte. A narrativa é lenta e processual, a trama se desdobra costurada à anterior porém de forma independente, a distopia é recriada com uma das fotografias e direções de arte mais impactantes dos últimos tempos, Harrison Ford é um coadjuvante de luxo que contribui para a trama sem tomar para si o espaço que não lhe é devido, Ryan Gosling consegue entregar um personagem tão enigmático e doído que envolve a audiência todo o tempo. E, por fim, o romance noir da primeira versão é repaginado por uma curiosa construção virtual-holográfica chamada Joi, a mulher de K, interpretada por Ana de Armas. A simples presença de uma relação afetiva entre o ciborgue e a mulher virtual abrem um precedente indireto para se pensar: seria a afetividade uma evolução dos novos replicantes ou essa paixão apenas uma ironia às paixões humanas, então sugestivamente consideradas “invenção” ou “ilusão” por analogia? O vilão Niander Wallace (mais uma criação “estranha” do sempre “estranho” Jared Leto) oferecerá a Deckard também um clone de sua antiga paixão. Mas Deckard anulará o impacto de seu fascínio momentâneo com a observação breve e racional de que os olhos de Rachel, ao contrário da imagem da replicante, eram verdes. Um simples detalhe que quebra o encanto. Como sempre pode ocorrer com o amor ou a paixão.

K é um replicante que sangra e chora. E Blade Runner 2049 também é um filme assim: humano, comovente, comovido. Para sangrar e chorar sobre a fantasia de um mundo de exploração, violência, destruição e ilusão que, a cada cena, mais sugere sincronismo com o nosso próprio futuro.

Fazendo de um espetáculo estético-visual um filme envolvente e cheio de simbolismos e citações, a direção de Villeneuve encanta, sendo corroborada em grande estilo pela exuberante fotografia de Roger Deakin, por um requinte extremo na cenografia de Dennis Gassner e na trilha sonora poderosa de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch. Os roteiristas Michael Green e Hampton Fancher entregam uma trama consistente e desenvolvem diálogos inspirados. Destaque para o embate filosófico entre K e a Dra. Ana Stelline (Carla Juri), sobre as memórias dos replicantes. “Nossas memórias são sentimentos. Qualquer coisa real deve ser uma confusão” – diz a médica, refletindo sobre a felicidade como algo que deva ser programado, a fim de se evitar o choque da dura realidade.

Pode ser que esta geração de agora ou aquela de outrora que idealizaram o universo de Blade Runner como um clássico inesquecível questionem ou estranhem alguma coisa no novo filme, a princípio. Mas isso não será nada mal, e muito menos uma novidade. Foi assim com o original, é assim com a sua sequência. O que não impedirá, após algum tempo de reflexão, que se reconheça nesta sequência uma obra-prima do gênero – tão fortuita quanto aquela em que tudo começou. O que comprova que a vida imita a arte: uma obra replicante pode ser tão perfeita quanto sua obra original!

Hélio Ricardo Rainho é diretor e autor teatral, comentarista de carnaval pelo site SRZD, bacharel em Comunicação Social e mestrando em Bens Culturais e Projetos Sociais na Fundação Getúlio Vargas.




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