sexta-feira, maio 17, 2024

A vida depois do tsunami de água e lama

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Por Vera Moll

A maioria absoluta conseguiu salvar sua vida, seu bem mais precioso. Como esse feito se deu? Pela coragem de seus habitantes e convocação de amigos das cidades próximas que trouxeram seus barcos movidos a motor porque só eles podiam vencer o rio caudaloso que agora corria pelas ruas da cidade.
Barcos pequenos sem motor seriam virados pela fúria das águas e barcos muito grande como lanchas destruiriam parte das edificações submersas.

Alguns salvamentos me foram relados ainda no calor da angústia que nos consumia. E farão parte indelével da memória, não porque eu só possa olhar para a parte que me toca, mas como espelho refletiriam o acontecimentos semelhantes que ocorreram nas outras casas e prédios onde as pessoas lutaram bravamente para salvar suas vidas, a vida dos vizinhos e daqueles que pediam socorro ao alcance de sua vista e ouvido.

Marcelo e Duda, maridos de minhas sobrinhas, enfrentaram o perigo em águas traiçoeiras e salvaram suas famílias. De Marcelo foi exigido grau maior de tino e frieza, como a água estivesse chegando próximo ao teto do segundo andar, ele colocou no alçapão, entre o forro e o telhado, um colchãozinho onde acomodou os filhos enquanto Patrícia o ajudava na operação de salvamento. Sim, perderam tudo, mas é assunto a ser enfrentado depois com garra e gerência das necessidades que serão colocadas em curso.

Cristina, tia de Marcelo, sobrevivia desde a madrugada com água chegando ao pescoço, ele não pensou, se atirou no rio que corria caudaloso e nadando até lá a salvou. Foi um ato de desespero, a força da água era tal que levava os carros, levou o carro de bombeiros, o que caísse ali lhe pertencia, Marcelo conseguiu vencê-la, louvado seja Deus, por sua estrutura física incomum, altura de 1.90, somados a sua poderosa força de vontade.
Celinha, minha cunhada, tendo de gerir a casa agora agregada das filhas, seus filhos e maridos, e como excelente dona de casa, colocar boa comida na mesa, roupa de cama limpa para todos, ainda assim me disse, no fim de semana passada, já conseguiu lavar parte da roupa das meninas, pergunto, ficaram em bom estado, a maioria sim, foi a resposta. Mais uma esperança, nesse mar de atribulação, as roupas não estão todas perdidas, com uma boa lavagem e ferro, podem continuar vestindo seus donos.
Solução inviabilizada nesse momento para a grande parte a da população que perdeu suas máquinas de lavar.

Tia Aylse, de 87 anos, viúva de meu querido tio Hélio, sempre esteve à frente da Associação Pestalozzi de Mimoso com grande competência e assertividade beneficiando em torno de 200 famílias que lutam com variadas deficiências de suas crianças e adolescentes. Como ela conseguiu se salvar? Ela foi acordada por sua cachorrinha, conseguiu falar com Helinho, seu filho, que ligou para o pai do Prefeito, seu Saul, que pediu a ajuda dos bombeiros. As janelas são todas gradeadas, a essas alturas, ela estava pendurada na janela, cabeça batendo no teto. Os bombeiros serraram parte da grade por onde puderam tirá-la. Ela pediu, queria que salvasse minha cachorrinha, o bombeiro mergulhou e a salvou. A maioria da população conseguiu se salvar, mas é de indagar, como vai se alimentar, se a cidade perdeu 90% de suas cozinhas, 90% do comércio e, o mesmo tanto na prestação de serviços.
Como a população vai encontrar novo rumo, com os bens que possuíam e conseguiram acumular com o trabalho, perdidos. De mãos vazias, com a roupa do corpo, como vão refazer a vida com alguma dignidade, e não é um caso isolado, 90 % da população está sem nada, desamparada.
As doações muito generosas têm ajudado nessa luta para obter comida nessas semanas que seguiram à catástrofe, assim como os voluntários que trabalharam incansavelmente, tantos os da cidade como os que vieram de fora, um serviço heroico em prol da sobrevivência da população desvalida.
Vou relatar alguns casos, o primeiro, a história de um casal jovem, cujo vídeo despertou muita atenção. Um drama de amor. A jovem esposa, grávida, foi colocada pelo marido dentro da geladeira e ali a conduziu vencendo a força da água. A mim causou aflição todo o tempo da travessia, tanto era o medo que a porta se vedasse, asfixiando-a. Terminou com ambos sãos e salvos. O episódio emocionou particularmente aos paulistas que fizeram expressivas doações. Com ela, um voluntário montou uma cozinha com farta distribuição de marmita. A que vi continha canjiquinha, que por si só seria um refeição completa e saborosa. Duas outras histórias aflitivas que exemplificam como o comércio foi destruído. Toti, um amigo, havia reformado a casa ao gosto de sua esposa, porém, dela só restaram os destroços. Mais o pior ainda está por contar, ele foi guardar o caminhão, seu instrumento de trabalho, em uma parte mais elevada, retornou poucos minutos após, os 500 bujões de gás, do qual ele é o representante, tinham sido carregados pela enxurrada. Vejam o tamanho de seu prejuízo, eles eram entregues em consignação e pagos ao final, no acerto de contas.

Thier perdeu duas farmácias, vou relatando alguns poucos casos que
me chegaram espelhando as perdas acontecidas em todas as famílias nas áreas atingidas pela catástrofe. O filho de Maninha, acabara de montar consultório segundo o último padrão odontológico; esforço e capital perdido. O médico, que cuidou de mamãe nos seus últimos 20 anos de vida, perdeu junto com a esposa, também médica, o consultório utilizado há muitos anos pelo casal.
No setor de produção de bens, a Cooperativa de Laticínios de Mimoso do Sul perdeu 2 milhões e quinhentos mil reais. Tento recolher notícias sobre a ajuda do Estado estadual e Federal. O governador, SR. Casa Grande, eu soube, esteve em Mimoso três vezes, e tem se empenhado em socorrer a cidade e seus moradores. Prometeu 3500 reais aos mais pobres. Um cadastro seria feito para que a medida seja efetuada. Dando seguimento, no sábado passado, dia 6 de abril, o Governo do Estado esteve presente em Mimoso para atender a população afetada pela enchente, com o programa Cartão Reconstrução: emissão de documentos, microcrédito, crédito, informações aos empreendedores etc.
Quando pergunto pela presença do governo federal as respostas são sempre negativas, vagas: até onde sei não vi nada do governo federal.

Salvo a presença e atuação do deputado federal Evair de Melo. Apesar da boa presença do SR. Casa Grande, governador do Estado do ES, fico descrente com a burocratização no programa do CARTÃO DA RECONSTRUÇÃO. Quais os critérios para receber o Cartão Reconstrução: Ter cadastro no CadÚnico com dados atualizados nos últimos 24 meses. (Em situação de calamidade pública, como a exigência se explica?), Ter renda familiar de até 3 salários mínimos. (Os mais pobres não estarão provavelmente habilitados) e Ter os danos causados pelas chuvas comprovados pelos órgãos competentes. (Defesa Civil Municipal). Creio que tais critérios criam dificuldades para beneficiar as pessoas mais pobres como tinham me dito a iniciativa seria dirigida. Faço uma pausa para contar um episódio que se inscreve no gênero do assombro, mas é notícia que vem com a tragédia que atingiu Mimoso do Sul, ES.

Carlos Alexandre tinha um caminhão, quando a água começou a subir, ele o estacionou em lugar alto, mas não o suficiente, foi parcialmente destruído pela agua, o seguro quer dá perda total, mas não dá para comprar outro caminhão. De caminhão fretado foi até Conceição de Muqui, distrito de Mimoso, entregar os bujões de gás.

De lá não pode passar, A natureza não possui misericórdia em seus impulsos de destruição. Mais de vinte pontes caíram, as maiores com certeza. Reserva não existe mais. Os fazendeiros perderam tudo. Tragédia maior, vidas perdidas. Casas perdidas. As lavouras de café destruídas pela enxurrada. Os bois que pastavam na várzea levados pela agua. Ele relata cenários nunca vistos que dão outra dimensão à tragédia.

Ouvimos muitas e muitas vezes a expressão: a fé remove montanhas. A fala é simbólica, mas a realidade transforma nosso entendimento do mundo, vivemos o suficiente para saber que as montanhas podem, de fato, se mover. Assombro, a lavoura de café, com mais de 10 mil pés de café na hora de ser colhido, foi removida para a estrada. Do cafezal só restou destroços. A narrativa muda de tom, o inacreditável aconteceu visto e testemunhado pelo homem, a montanha foi removida para a estrada. As pessoas se horrorizam, se benzem, cruz credo, dizem é o fim dos tempos, conforme anunciado na Bíblia.

Ele conclui, o peso da tragédia que as atingiu é intolerável, as pessoas estão muito deprimidas, nem sei o elas podem fazer, ele diz. Peço socorro ao engenheiro, Leonardo Cozendey. A montanha removida de lugar é um evento pequeno, mas da mesma natureza das mudanças que há milhões de anos separou a Pangeia, a terra única e coesa, em vários continentes, será algo semelhante? Acredito que não, são fatos decorrentes da fortes chuvas que excederam ao normal. Verdade, vejo agora no vídeo, o solo que a sustentava permanece lá, só ela foi removida. Como disse o engenheiro antes, são eventos naturais e atípicos que não serão sentidos novamente por essa geração. Sim, com a graça de Deus, não passaremos por isso novamente. Lá ninguém ouviu falar no governo federal. Mudo, ausente na terceira maior tragédia brasileira.

Continua…

Vera Moll é escritora, autora de vários livros, entre eles “Meu adorado Pedro”

 

 

 

 

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