sábado, maio 11, 2024

Jogos Vorazes: Mundos Vorazes próximos de nós

Blogs e ColunasColuna Olho Crítico, por Hélio Ricardo RainhoJogos Vorazes: Mundos Vorazes próximos de nós

Regredir para avançar.

Nos últimos anos, uma tendência tem se estabelecido na indústria do entretenimento, onde filmes e séries têm adotado a prática de retroceder no tempo para explorar origens e conceitos de seus personagens e tramas. Exemplos não faltam: “Rogue One” (2016) precedendo eventos de “Star Wars”, “Dr. Sono” (2019) apresentando o Danny Torrance de “O Iluminado”: “Coringa” (2019) revivendo a juventude doentia do vilão psicopata; “O Continental: Do Mundo de John Wick” mostrando a ascensão de Winston Scott como o gângster dono do famoso hotel da franquia John Wick.

Sejam prequelas (narrativas de tempo anterior ao de uma saga) ou spin-offs (obras derivadas de outras, focando um personagem secundário ou conceito de outra trama já conhecida), o mote tem se repetido.

 

A franquia Jogos Vorazes também aposta na ideia, com “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes, EUA, 2023). A partir do romance escrito por Suzanne Collins em 2020, a adaptação para as telonas revolve cerca de 64 anos antes dos eventos da saga original e foca na trajetória e ascensão ao poder do cruel Coriolanus Snow, que mais tarde se torna o presidente Snow, um líder autoritário e implacável, comandando a Capital e exercendo controle sobre os doze distritos.

Como é recorrente nesse tipo de retronarrativa, a trama se esforça em mostrar como uma índole pouco propensa ao mal é corrompida e se perverte. Aspectos sensíveis de Coriolanus (Tom Blyth)- que, ainda menino e órfão de pai, tenta restituir a propriedade de sua família aceitando o convite dos frívolos idealizadores dos jogos Cas Highbottom (Peter Dinklage) e Volumnia Gaul (Viola Davis) pra ser mentor do tributo Lucy Gray Baird (Rachel Zegler) – evocam uma espécie de senso comum sobre o quanto somos socialmente vulneráveis à corrosão de nosso caráter. “O homem nasce puro e a sociedade o corrompe” – já dizia a máxima de Jean-Jacques Rousseau. Ocorrem, entretanto, alguns episódios nessa travessia que insinuam uma quebra desse aforismo. Se por um lado ele resiste e contesta as malignidade das etapas do jogo, por outro age de forma egocêntrica e friamente racional. Snow tem rompantes: não fica suficientemente claro se advindos de suas “vulnerabilidades sociais” ou efetivamente de seus próprios instintos intrínsecos. E essa parece ser a decisão mais acertada do roteiro, adaptado a quatro mãos por Michael Lesslie e Michael Arndt, também positivamente trabalhada na direção firme de Francis Lawrence – o mesmo das três edições anteriores. Snow é humanizado pela dúvida. Ele nos confunde como outros Snows de nosso mundo real!

 

Tom Blyth e Viola Davis: a origem do vilão Snow passa pela crueldade de Volumnia

 

O esmero dos cenários e da ambientação do mundo apocalíptico característico dos filmes distópicos está todo lá: disparidades arquitetônicas, lugares lúgubres, atmosfera opressiva. Um cinema de sombras e contrastes entre a tecnologia futurista e as ruínas do caos. A longa duração do filme procura não se tornar arrastada nem mesmo quando a relação entre o mentor Snow e a mocinha-tributo Lucy fica açucarada e ganha ares de romance: é possível compreender que o público essencialmente adolescente do filme anseia por esse tipo de abordagem. Percebem-se, entretanto, delicadas nuances dramáticas que espelham problemas do mundo real contemporâneo: o levante de tiranos, as insurreições populares, a grandiosa desigualdade de castas sociais, o despotismo escancarado dos governantes. A metáfora do pássaro e da serpente presentes no filme e no titulo faz sentido em uma obra que reflete, de certa forma, como estamos divididos entre o encanto e o veneno – no filme como em nosso mundo real.

 

A presença ostensiva da excelente atriz Rachel Zegler como cantora injeta no filme uma certa aura de musical. Sua Lucia Gray é insegura como uma menina oprimida e valente como uma guerreira do Distrito 12. Ambiguidade bem defendida por uma atuação carismática que ajuda a carregar todo o filme. Tom Blyth também entrega um Snow intenso e senhor de suas cenas, trabalhando com esmero a linha tênue entre vitima e carrasco de seu próprio mundo. A extraordinaire Viola Davis, no papel da tenebrosa cientista Dra. Volumnia Gaul, só não é perfeita porque o próprio roteiro não deixa: há um tom exageradamente caricato na apresentação, na caracterização e nas atitudes da vilã que impedem uma construção verossímil. É uma falha que nem roteiro nem direção conseguem conter, e que a atriz busca contornar em todo tempo com sua técnica irrepreensível. Viola vence Volumnia. O que não deveria acontecer!

 

A metáfora dos Jogos: uma correlação com o mundo presente?

LEGENDA: A metáfora dos Jogos: uma correlação com o mundo presente?

 

A saga de Suzanne Collins é um dos maiores êxitos do storytelling deste milênio talvez por projetar de forma muito clara o quanto a tirania do passado absolutista da humanidade perpassa o inconsciente das democracias de nosso tempo e ameaçam o nosso futuro. Justamente porque ainda existe muita gente interessada no atrativo lúdico de um mundo mau. Nos negócios, temos a “gamificação”; na politica, temos o “jogo de narrativas”; no entretenimento temos os “reality shows”. Somos um mundo que joga. Na ficção literária e cinematográfica, temos os Jogos Vorazes. Vale refletir.

 

O mundo mau anseia por entretenimento envolvendo vidas. E esse mundo real parece perfeitamente espelhado na narrativa perene e convincente da série dos “Jogos Vorazes”. Que neste seu mais recente blockbuster não decepciona e entrega tudo. Um misto de diversão e alerta para a nossa própria realidade.

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