quinta-feira, maio 9, 2024

Paixão e propósito, a receita para a transformação de Santa Cruz

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Dizem que o princípio do sucesso é colocar paixão naquilo que se propõe a fazer, pois desta forma, o trabalho que é desenvolvido nunca será visto como uma obrigação, mas como algo que é preciso ser feito para causar uma transformação significativa na realidade. Adicione a isto um extremo senso crítico alinhado com um propósito muito bem definido e você certamente estará falando do projeto de educação patrimonial “Descubra Santa Cruz RJ”, idealizado pela guia de turismo Andressa Lobo no bairro homônimo.

Desde 2019, Lobo promove caminhadas culturais pelo bairro do Rio de Janeiro com o propósito de mostrar aos moradores e visitantes o potencial turístico da região, bem como a sua importância para a história do Brasil, algo que muitos jamais associariam à Santa Cruz. Durante esse tempo já foram realizadas 25 Caminhadas Culturais, agumas exclusivas para projetos sociais da região, impactando aproximadamente 800 pessoas, que ouviram os relatos extremamente passionais de Andressa. “Nosso objetivo é que no período pós-pandêmico Santa Cruz esteja no Mapa Turístico, Histórico e Cultural, do Rio de Janeiro. Isso irá impactar, inclusive, a vida do morador local que vai poder trabalhar perto de casa recebendo os turistas, em vez de encarar longas horas na mobilidade urbana diariamente”.

As caminhadas culturais estão abertas a todos e a inscrição pode ser feita pelo site do projeto: https://descubrasantacruzrj.com.br/

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Flávia Ferreira: Como surgiu o Descubra Santa Cruz?
Andressa Lobo: Eu tive a sorte de estudar em uma escola do bairro onde tínhamos a História de Santa Cruz todo primeiro bimestre do ano, do CA ao Ensino Médio, essa era a política da escola. Acredito que lá eles tenham plantado essa sementinha de educação patrimonial. No Ensino Médio fui estudar em outro bairro e não tive problemas de autoestima quando sofria bullying sobre onde morava, pois, conhecia minimamente meu bairro. Mas não, eu ainda não tinha ideia da importância “Real” de Santa Cruz.

Sempre que recebia visitas em casa, queria apresentar a eles os belos prédios antigos que tínhamos, mas eu não sabia muito sobre a história deles.

Há pouco mais de 5 anos me formei como guia de turismo e era a responsável por levar grupos francofônicos à Petrópolis e por muitas vezes vi turistas procurando lá o Palácio daqui, vi o apagamento da história do bairro quando ignoram a origem do telefone que está no Museu Imperial, ou a origem do trono que está lá. Sempre que contestada sobre o palácio retratado por Debret, eu só podia responder que “aqui em Petrópolis você não vai encontrá-lo”, justamente por Santa Cruz (ainda) não ser um produto vendido nas operadoras de receptivo da cidade do Rio de Janeiro.

A pandemia e o “fique em casa” foi a oportunidade para me dedicar melhor aos estudos sobre a história de Santa Cruz, as primeiras pesquisas foram publicadas ainda na minha página “Dê Viajante” e quando uma operadora de Turismo 1b1 me solicitou um roteiro diferente, fiz em setembro de 2019 o primeiro Tour Virtual “Descubra Santa Cruz RJ”. Estivemos no Top 5 de tours on-line da empresa aquele ano, e fomos recorde de interação, sendo citados na reunião de balanço com a equipe internacional. E esse foi o momento em que eu percebi que o meu projeto com Santa Cruz precisava de nome e marca própria.

Então, em maio de 2020, lançamos oficialmente o Descubra Santa Cruz RJ durante a Semana Nacional dos Museus, na programação do Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH-Santa Cruz) primeiro ecomuseu comunitário do Brasil.

As pessoas se apaixonam novamente pelo bairro quando conhecem outra perspectiva do nosso local.

FF: Poderia dizer que o Descubra Santa Cruz é mais que um projeto turístico, uma forma de reconhecer a importância de Santa Cruz no cenário histórico imperial? Por quê?
AL: Sim, somos um projeto de Educação Patrimonial que busca antes de mais nada apresentar aos moradores locais nossa importância na História do Brasil. Nosso objetivo é que no período pós-pandêmico Santa Cruz esteja no Mapa Turístico, Histórico e Cultural, do Rio de Janeiro. Isso irá impactar, inclusive, a vida do morador local que vai poder trabalhar perto de casa recebendo os turistas, em vez de encarar longas horas na mobilidade urbana diariamente.

Antes de ser formada como guia de turismo, sou formada em Relações Públicas e foi a união desses saberes que ajudou a criarmos um projeto que vai desde as Caminhadas Culturais a criação de livros infantis da coleção “História de Santa Cruz para crianças” com contação de história na rede pública de ensino, conforme aprovado para captação por lei de incentivo municipal no ano passado.

O projeto pretende ser financiado por leis de incentivo. Ano passado conseguimos aprovar três projetos, dois na esfera municipal e um na federal, mas infelizmente não conseguimos captar. Os empresários ainda não enxergam Santa Cruz como um investimento rentável. Terminamos o ano com duas cartas de interesse em patrocinar nossos projetos em 2022 e vamos trabalhar para que as coisas aconteçam aqui, pois, acreditamos que depois que o primeiro acontecer outros patrocinadores se interessarão por nós.

Santa Cruz tem muito mais história, para além do Período Imperial, mas utilizamos em nossas divulgações o que chama atenção e, uma vez que as pessoas chegam aqui, apresentamos os demais aspectos do bairro. Tanto que quando vendemos o roteiro “Sede da Fazenda Real”, lembramos do diferencial que antes de Petrópolis era aqui a casa de veraneio desde o período da Família Real no Brasil.

FF: Como tem sido desenvolver esse projeto em um bairro tão imerso em pré conceito por parte da população do Rio e de seus próprios moradores?
AL: Em 2019, foi realizada a Maratona do Rio Criativo em Santa Cruz e com inúmeros agentes, atores e ativistas locais chegamos a um diagnóstico unânime: “o bairro de Santa Cruz tem problemas de autoestima e muito disso porque não conhecemos nossa própria história e a importância que tivemos na formação do país”.

Quando eu criei o projeto, eu sabia que não adiantava tentar vender Santa Cruz como produto turístico para turistas de fora, quando os moradores locais não conheciam a própria história e enxergavam nosso patrimônio acumulado como prédios velhos que atrasam o desenvolvimento local.

Quando apresentamos no III Congresso Internacional e Interdisciplinar em Patrimônio Cultural: Experiências de Gestão, Educação e Inovação, ano passado, o artigo “Santa Cruz e Petrópolis: Duas Residências de Veraneio da Família Imperial com Destinos tão Distintos”  trouxemos à tona esse questionamento de como Petrópolis conseguiu se vender e fazer desses “prédios velhos” atrativos turísticos enquanto víamos em meio a pandemia o desmonte de alguns de nossos patrimônios acontecerem na ausência da atuação do Estado.

Tenho um amigo que me chama de “minion” quando me vê uniformizada para as Caminhadas Culturais, mas é muito bom ver o quanto isso atraí a atenção dos moradores e transeuntes locais, e como isso muda a perspectiva deles sobre o próprio bairro. Não por acaso, eles param para ouvir as explicações enquanto nos movemos pelo bairro e o olhar deles sobre os prédios de sempre muda.

A tarefa não é fácil, o desafio é muito grande. Mas Santa Cruz tem potencial (e história também) para isso. Acreditamos que as mudanças (inclusive de prioridades) no período pós-pandêmico, nos ajude a quebrar esse paradigma de que o mapa turístico da cidade não chega até essa parte da Zona Oeste. Quando o mundo voltar ao normal, os próprios cariocas vão querer conhecer melhor a história da nossa cidade e visitar pontos turísticos mais acessíveis a todos.

O Bicentenário da Independência chegou para antecipar um pouco nosso planejamento, mas foi ótimo para anteciparmos os holofotes para o bairro.

FF: Qual é a relação do projeto com o NOPH?
AL: O NOPH é a maior referência em Pesquisa Histórica sobre o bairro, foi o primeiro Museu que conheci e é a principal fonte primária de pesquisa local. Então, quando iniciamos o projeto, fizemos várias reuniões, inclusive com outros guias que atuam na região, até surgir o Descubra Santa Cruz RJ. Eu brinco que quero jogar futebol e eles são os donos da bola.

Nossa parceria é uma relação ganha-ganha, em que trouxemos ao NOPH a possibilidade de crescer de forma sustentável usando leis de incentivo. Nosso projeto aprovado na Rouanet no ano passado era de Conservação Museal, onde iríamos começar a tratar o acervo do Museu para no futuro disponibilizá-lo em ambiente digital.

“O bairro de Santa Cruz tem problemas de autoestima e muito disso porque não conhecemos nossa própria história e a importância que tivemos na formação do país”.

FF: Durante as caminhadas, eu percebi várias reações de surpresa das pessoas que participavam por não imaginar a importância histórica do bairro. Poderia dizer que isto é comum durante as caminhadas culturais?
AL: Sim e isso é ótimo! As pessoas se apaixonam novamente pelo bairro quando conhecem outra perspectiva do nosso local.

FF: O projeto surgiu antes da pandemia. Como a Covid-19 impactou o Descubra Santa Cruz e como você conseguiu se reinventar e ganhar ainda mais forma nesse processo de reconhecimento histórico?
AL: As pesquisas começaram antes, a vontade de fazer algo pelo bairro sempre existiu, mas o Projeto veio com a pandemia.  Confesso que nem eu tinha noção dos rumos que ele ia tomar, nem a proporção que chegaria. A pandemia foi o momento que eu precisava para parar minha vida e me dedicar ao meu bairro.

Na correria de pagar as contas, trabalhamos postergando nossos sonhos, e o “fique em casa” era a pausa que faltava para mudar nossas prioridades. A Covid-19 veio para proporcionar esse olhar mais carinhoso pelo bairro. Eu me apaixonei mais uma vez pelo meu bairro e consegui fazer com que outros se apaixonassem também.

É muito lindo ver os jovens se voluntariando para trabalhar no projeto, influencers vindo fotografar e ajudando a compartilhar nosso projeto, o boca a boca entre os moradores locais que agora tem a oportunidade de relembrar um pouco mais suas memórias sobre o bairro.

FF Qual o futuro do projeto?
AL: Temos Planejado os primeiros 5 anos do projeto, com algumas alterações, devido a pandemia. Esse ano iríamos até as escolas apresentar nossa história para no ano que vem começar a recebê-las. No terceiro ano, gostaríamos de qualificar a mão de obra local em serviços de hospitalidade e turismo. E no quinto ano criar um calendário de eventos no bairro, inspirado no que vemos em Petrópolis (também temos nossa Colônia de Japoneses, temos a Sociedade Sul-Riograndese e a Pastoral Afro, o Mineiro-Pau.) Histórias locais que podem ser um atrativo a parte.

FF: O que a cidade do Rio e o bairro ganham com o reconhecimento histórico de Santa Cruz?
AL: Ganhamos mais uma opção de lazer, uma memória da História do país que foi apagada com o tempo.  Ano passado levamos ao Secretário Municipal de Educação essa questão, de que comparado às cidades vizinhas (da Costa Verde, por exemplo) o Rio não tem o ensino da História da Cidade em suas unidades escolares. Provavelmente pela cidade ter sido a capital do país por tantos anos, aprendemos a história do Brasil e não a do Rio. Um de nossos objetivos é que o Descubra Santa Cruz inspire outros bairros periféricos a estudarem e divulgarem sua história também, criando uma descentralização do eixo Centro-Zona Sul.

FF: Se você pudesse resumir o projeto em uma frase, qual seria?AL
AL: Na Zona Oeste Carioca existe um bairro com muitas histórias e legados esperando para serem descobertos por vocês. Venha e descubra Santa Cruz RJ!!!

 

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