domingo, maio 19, 2024

A história da tragédia no Gran Circus Norte-Americano, em Niterói

RioNiteróiA história da tragédia no Gran Circus Norte-Americano, em Niterói

Crédito da foto de capa: Jorge Peter/Revista Flagrante

Atualizado: 18/12/2021

No dia 17 de dezembro de 1961, a cidade de Niterói passou pela maior tragédia que já viveu em toda a sua história: o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, que deixou em seu rastro cerca de 500 mortos e 120 mutilados, além de dezenas que foram obrigados a conviver com marcas profundas e permanentes, físicas e psicológicas.

Era uma tarde quente. Instalado na Praça do Expedicionário, o Gran Circus Norte-Americano, autoproclamado maior da América Latina, recebia mais de 3 mil visitantes, e comportava tantas pessoas quanto o Cirque du Soleil hoje em dia

Acervo UH/Folhapress

No panfleto convocando o respeitável público, anunciaram orgulhosamente terem uma tenda do mais moderno material — Muitas seriam acesas por esse deslize. Estava para começar o pior desastre circense de toda a História, em todo o planeta. E o pior incêndio do Brasil, com mais de o dobro das 189 vítimas do Joelma, em 1974, e as 242 da boate Kiss, em 2013.

Vingança

Dois dias antes, uma figura soturna rodeava o circo. Era Adílson Marcelino Alves, mais conhecido por Dequinha. Fora um dos 50 trabalhadores que o dono, Danilo Stevanovich, havia contratado para realizar a montagem da estrutura. Tinha a ficha suja por furto, aparentava problemas mentais e terminou demitido após apenas dois dias.

Na véspera do incêndio, Dequinha fora agredido por Maciel Felizardo, funcionário do circo, após bater boca com ele, acusando-o de ser responsável por sua demissão. Na fatídica tarde, seu ódio acabou multiplicado ao ser barrado na porta por tentar entrar de graça.

Circo em chamas

O circo havia atingido sua lotação máxima. Faltando apenas 20 minutos para o fim, o pânico foi instantâneo: a lona incendiou-se ruidosamente e seus pedaços começaram a cair sobre as pessoas, que se empurraram em desespero, até que algumas delas não pudessem mais respirar no aperto.

A elefanta saiu em disparada, atropelando quem estivesse no caminho — mas abrindo uma saída (Que também ajudou a salvar as pessoas), porque não havia nenhum plano de emergência. Em pouco mais de 5 minutos, a lona foi totalmente consumida pelo fogo. 372 pessoas morreram na hora. As outras, num total oficial de 503 vítmas, morreriam depois.

Era homicídio, foi a conclusão da polícia. Dequinha havia reunido dois comparsas — José dos Santos, o “Pardal”, e Walter Rosa dos Santos, o “Bigode”, — para começar sua vingança. Que era simples: jogaram gasolina na lona e acenderam.

O então presidente João Goulart imediatamente foi para Niterói acompanhar a situação. Voluntários fizeram fila para doar sangue. O caso causou comoção mundial, com doações vindas dos EUA até o Vaticano.

Hospital fechado e estádio usado para atender as vítimas

Por coincidência, naquele dia, a classe médica do estado do Rio de Janeiro estava em greve. O Hospital Antônio Pedro, o maior de Niterói, estava fechado. A população arrombou a porta e, os médicos em greve foram sendo convocados através da rádio, pelos soldados do exército, os quais compareceram ao hospital de imediato. Médicos de clínicas privadas também foram atender ao hospital. Inclusivamente, os cinemas e teatros de Niterói, Rio de Janeiro e outras cidades vizinhas interromperam seus espetáculos para averiguar se haveria médicos entre o público, tal foi a dimensão da catástrofe. Padres também foram convocados de emergência, para darem a extrema-unção às vitimas que já se sabia que não tinham qualquer hipótese de sobrevivência. Nos dias seguintes, várias personalidades da elite fluminense e, brasileira no geral, deslocaram-se à Niterói para prestar o máximo de apoio e auxílio às vitimas.

As agências funerárias não tinham mãos a medir, tal era elevado o número de caixões que eram necessários, para enterrar as vitimas mortais. O Estádio Caio Martins foi transformado numa oficina provisória para a construção rápida de urnas, com carpinteiros da região a trabalharem dia e noite. Os cemitérios municipais de Niterói logo ficaram lotados; assim, uma roça de São Gonçalo, vizinho de Niterói, foi usada de urgência como cemitério para enterrar os restantes corpos.

O cirurgião Ivo Pintaguy tornou-se uma celebridade então, ao atender dezenas de vítimas e notar que cirurgia plástica não era apenas vaidade. Com as técnicas desenvolvidas por ele, a cirurgia plástica no Brasil muito deveria à tragédia de 1961.

Não fosse a abismal escolha do nylon e parafina, talvez ninguém teria morrido. Mas a polícia, a imprensa e o governo, considerando a origem criminosa, não responsabilizaram Stevanovich.

Palhaço Carequinha

O Palhaço Carequinha ajudou no financiamento para a construção de um cemitério em São Gonçalo, para enterrar as vítimas do incêndio, que eram muitas para serem sepultadas apenas no cemitério de Maruí, em Niterói.

A história é contada nesse episódio do programa LINHA DIRETA JUSTIÇA

Sobrevivente do incêndio reconstruiu sua vida, escreveu livro e luta por justiça

A moradora de São Gonçalo, Zezé Pedroza, como gosta de ser chamada, teve 90% de seu corpo queimado (queimaduras de 3º grau), no incêndio e sobreviveu se tornando professora e escritora.

Zezé escreveu um livro chamado Vidas em Chamas em que conta sua história através da personagem Natali. A autora traça um paralelo entre os ancestrais da época da escravidão, perpassando por uma análise do cenário político-econômico do Brasil antes e depois da tragédia. Os dois capítulos que narram, com detalhes, os momentos em que esteve dentro do circo em chamas ficam no meio do livro.

Zezé ficou 20 dias em coma e 8 meses internada, passou por 15 cirurgias para recuperar algumas partes do corpo. As marcas impressas em sua pele foram suas inimigas durante muitos anos.

“Com pensamento longe eu cheguei ao ano de 1961. Exatamente no dia dezessete de dezembro, quando o calor estava a quase quarenta graus, e a distração era geral, eu sentada na arquibancada aplaudindo o espetáculo, que foi interrompido com o grito… Fogo! Era a lona de nylon e parafina do Gran Circus Norte Americano ardendo, em labaredas. Ainda hoje eu revivo aquele horrível momento, a multidão correndo em uma só direção e caindo uns sobre os outros que eram pisoteados na fuga da última cena. E eu também estava lá! Mas sobrevivi para contar a minha história de superação. E nem poderia esquecer esse dia que transformou a minha vida, meu viver e minha aparência. Vidas em Chamas, conta com detalhes todo o meu sofrimento, mas também fala de como dei a volta por cima e conquistei tudo que diziam que eu jamais conseguiria. Não é difícil ser feliz, basta se aceitar”, explicou a autora.

LUTA NA JUSTIÇA

Em 1962, a mãe de Zezé deu entrada em um processo indenizatório e por questões pessoais elas deixaram todo o andamento do processo nas mãos de um advogado. Em 1976 ela resolveu procurar pelo advogado e pelo processo, mas ambos haviam desaparecido. E, durante anos ela buscou seu processo em cartórios distribuidores de Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro, em vão. Até que em 2016 Zezé Pedroza encontrou seu processo. Entretanto ela descobriu que havia perdido a causa, já que nem o município de Niterói, nem o estado do Rio de Janeiro, nem o Governo Federal se responsabilizaram pelo incêndio na época, alegando que o incêndio foi criminoso. Além disso, Maria José também não recebeu o valor que cabia a ela do “Fundo de Assistência às vítimas do incêndio em Niterói”, decretado e divulgado no Diário Oficial de 19 de dezembro de 1961 pelo então governador Celso Peçanha.

Mas a professora não desistiu e, com a ajuda de outro advogado, o processo foi refeito e incluído na lista de processos especiais de direitos humanos da ONU. Contudo o processo lá está há quase 2 anos. “Foram tantas lutas! Tantas dores e perdas! Sempre fomos pobres, entretanto meu pai vendeu tudo o que tinha para salvar minha vida. Depois de tudo o que aconteceu comigo, não posso passar por essa vida sem ver concluída, de forma positiva, a justiça dos homens em minha história”, finalizou.

Autoridades não aprenderam nada com as tragédias

Em 2013, o jornalista Mauro Ventura, que escreveu um livro contando a história do incêndio no circo afirmou ao UOL que as autoridades brasileiras “não aprenderam nada nos últimos 52 anos” e usou como parâmetro, o incêndio da Boate Kiss, em 2013. “O circo tinha apenas uma porta para entrada e saída, da mesma forma que a boate. Não havia nenhuma porta de emergência. O Gran Circo também não possuía extintores de incêndio, o material utilizado para fabricar a lona era altamente inflamável [a perícia mostrou que a lona era feita com algodão revestido por uma camada de parafina, e não de náilon, como propagava o então dono do circo, Danilo Stevanovich, morto em 2001]. No caso da boate, os extintores não funcionaram, pelas primeiras notícias que recebemos, e o teto foi rebaixado para instalação de isolamento acústico que utilizava material inflamável. Enfim, nos dois casos, não havia um sistema anti-incêndio”.

Arquivo do Jornal O GLOBO

O que aconteceu com o dono do circo

O dono do circo, Danilo Stevanovich, ficou solto, voltou a trabalhar com circo e a família até hoje segue no ramo. Desde 1999, a família chama o circo de Le Cirque e a estrutura é super diferente do Gran Circo Norte-Americano, além de seguir as normas do Corpo de Bombeiros.

Danilo Stevanovich era gaúcho de Cacequi, membro de uma família de sete irmãos que dominavam uma rede de circos na América Latina, como Argentina. Afora uma portuguesa, um japonês, um chinês e um casal francês, os demais artistas do Gran Circo Norte-Americano eram todos brasileiros do Sul. Faleceu em 2001. Uma curiosidade é que a trapezista Antonietta Stevanovich, irmã de Danilo, foi a primeira a dar o alerta dentro do circo.

Era o terceiro circo sob a administração dos irmãos Stevanovich que pegou fogo. Os outros dois, Bufalo-Bill e Shangri-lá, foram destruídos em 1951 e 52, respectivamente, na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Entre as vítimas, no entanto, estavam apenas animais do circo. Estes, por sinal, não eram poucos. Com três elefantes, uma girafa, 12 leões, dois tigres, quatro ursos pardos, dois polares, um chimpanzé, um camelo, um antílope, um cavalo e alguns cães, o Gran Circo se gabava de ser um zoológico itinerante.

O que aconteceu com os criminosos

Com base no depoimento de funcionários do circo que acompanharam as ameaças de Dequinha, ele foi preso em 22 de dezembro de 1961. Os cúmplices Bigode e Pardal também foram presos.

Todos iriam presos antes do final de dezembro. Em outubro de 1962, Dequinha foi condenado a 16 anos de prisão. Terminaria assassinado ao tentar fugir, em 1973 — nunca ficou claro por que e por quem. Bigode recebeu 16 anos de condenação, e mais 1 ano em colônia agrícola. Finalmente, Pardal foi condenado a 14 anos de prisão, e mais 2 anos em colônia agrícola

Profeta Gentileza

A notícia também impactou um empresário de cargas de São Paulo. José Datrino acordou 6 dias depois do incidente, ouvindo “vozes astrais”, mudou de vida completamente e foi morar no terreno onde o circo pegou fogo. Deixou a barba crescer e se tornou o famoso Profeta Gentileza, com sua bata branca e morreu em 1996.

Lembrança

A flâmula do dia da estreia do circo está a venda num site de peças raras. Veja aqui

https://www.casadovelho.com.br/1f855c/flamula-original-do-circus-norte-americano-da-familia-stevanovich-incendiado-em-1961-tragedia-de-niteroi-deixou-mais-e-500-mortos-peca-original

Trauma

A verdade é que a tragédia traumatizou a cidade de Niterói que só voltaria a ter um circo quatorze anos depois, em 1975, o Hagenback, e a prova de fogo. Uma marca que nunca irá se apagar da história da cidade e do país.

Check out our other content

Check out other tags:

Most Popular Articles