domingo, maio 5, 2024

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Os especiais

Eu não esperava por isso, mas fui sorteado para presidir o Brasil. O primeiro presidente sorteado depois que a Democracia Aleatória foi instituída no Brasil para substituir a velha Democracia Representativa. Por um momento, lembro-me da confusão que isso gerou no debate público brasileiro, as brigas no congresso, as rusgas entre seguidores de grandes pensadores brasileiros, como Gentilli e Duvivier. Até figuras que não apareciam fazia séculos apareceram para opinar. Os programas da Maysa Silva e do Dudu Camargo no SBT, canal de maior audiência no Brasil, gênios da comunicação brasileira, só falavam sobre isso, trazendo todos para o debate. A expectativa tomava conta do Brasil, mais que um sorteio da Mega da Virada. Qualquer brasileiro com mais de 35 anos e formação superior, poderia ser sorteado para ser o próximo presidente do Brasil.

Quando o sistema eletrônico mostrou em horário nobre o número do meu CPF, quase caí duro pra trás. Confesso que já pensei muito em como seria ser presidente, mas achei que por sorteio seria ainda mais impossível do que seguir o “processo natural” que vigorava até ali. A imprensa estava enlouquecida para tentar descobrir logo qual era minha identidade e meu paradeiro, o que não demorou muito.

Em poucos minutos um batalhão de repórteres, carros de imprensa e populares, fechavam a rua do meu prédio. Minha mulher, que de uma hora pra outra virara Primeira-Dama, perguntava o que diabos vestir enquanto andava quinem barata tonta de um lado pro outro. Tudo aconteceu muito rápido: entrevista coletiva, questionamento sobre projetos, Polícia Federal fazendo segurança e varreduras, agentes de lugares que eu sequer conhecia a sigla e a existência, pessoas gritando palavras de incentivo, pessoas xingando, sirene da PM, hino do Brasil começando a tocar de um Uno velho estacionado ao longe. A cena era um misto de barulho, suor e excitação.

O Brasil estava perto de testar um sistema político controverso e arriscado, e todo foco e esperança estavam em mim. Nunca pensei tanto “puta que pariu” num espaço tão curto de tempo. Eu tinha as melhores das intenções no momento, mas sabia que estava encrencado. Qualquer um nessa situação estaria, de certa forma, encrencado. De uma hora pra outra você pulou do completo anonimato nacional pra se tornar um capítulo inteiro da história de um país, restava saber se para o bem ou para o mal. O que as crianças estudariam sobre o meu período como presidente daqui 50 anos? As pessoas diziam que queriam mudança, o que não era algo de muito novo na história. Eu sabia que as pessoas possuíam seus próprios interesses e que, mudanças exigem mover as peças dos jogos de interesse. Todos querem mudanças, desde que não mexam no seu! Não era uma missão muito fácil! Minha cabeça estava um tornado!

4 horas da manhã. Finalmente a poeira abaixou e consegui me fechar em meu apartamento. Poucas vezes gostei tanto desse apartamento! Sinto-me exausto, mas o oceano de adrenalina que percorre meu corpo me traz a convicção de que não conseguirei dormir agora. Tiro os saltos da minha esposa, que despencou na cama e já dormia de boca entreaberta sem tirar o vestido que usou na loucura que se apossou de nossa noite. Sei que ela nada bebeu, mas dormia ali como uma bêbada! Faço um cafuné, dou-lhe um beijo na testa e regulo a temperatura do ar. Tento assimilar o que está acontecendo e ouvir o barulho da ficha caindo quando caminho pelo corredor até a cozinha. Puta que pariu!

Pego uma garrafa de vinho, a mais cara das 5 que eu tinha, o que não significa que ela é cara de fato, dependendo do seu padrão. Também não deixo de pegar um charuto. Olho para a imagem de Churchill, quase como quem pede por uma intervenção divina. Sento na cadeira da varanda. Pensei em pedir uma pizza, porque considerei que o momento pedia uma pizza, mas me dei conta que nenhum drone faria entregas nesse horário. A noite está nublada e silenciosa, sequer tenho a possibilidade de admirar as estrelas. Espero que não seja nenhuma espécie de presságio! Presidentes pedem pizza no palácio?

Ton ton- ton ton. (desconsidere minha falta de talento para onomatopeias)

Meu BrainPhone vibra a pulseira no meu pulso. Meu primeiro pensamento é de que é um absurdo ligar para alguém nessa hora da manhã, mas depois me dou conta de que acabei de ser declarado o futuro presidente. Puta que pariu!

Aliso minha pulseira e um número é automaticamente projetado diante de meus olhos, flutuando no espaço vazio da varanda. Imaginei que pudesse ser alguém da família. Só consegui falar com minha mãe por cerca de 10 segundos depois do anúncio, tempo mais do que o suficiente para que ela pudesse se demonstrar apavorada e pedir para que eu tomasse cuidado, porque certamente iam querer me matar. O número é desconhecido, mas abaixo dele vejo uma palavra bastante significativa: Brasília!

Deslizo novamente meu dedo pela pulseira, dessa vez no sentido contrário. O holograma que se materializa na minha frente é de um rosto conhecido para quase todos os brasileiros. Um homem de “meia-velhice”, rosto meio esburacado, sorriso de artista, e um terno que devia valer umas 40 vezes o valor do vinho que eu tomava. Certamente o desejo era de transmitir imponência, mas aquela figura me soava pitoresca e, seu aparato visual, cafona! Ali estava o presidente da Câmara dos Deputados na minha varanda.

Os parlamentares só entrariam no esquema de sorteio depois de 20 anos, certamente um dos requisitos para a aprovação, a possibilidade de se manterem no poder por mais um bom tempo. O sujeito se apresentou de maneira muito animada, como se fosse um velho amigo dos tempos de escola; me parabenizou pela “conquista” e disse que juntos faríamos um grande trabalho.

– Quais suas principais pretensões, senhor presidente? – perguntou, como um pai que pergunta ao namorado da filha.

– Essa é uma resposta muito ampla, senhor deputado!- respondi depois de pensar por alguns segundos- Espero conseguir ter meu nome na história como alguém que mudou o Brasil para melhor, como alguém que seja lembrado com carinho, respondendo obviamente de maneira superficial.

– Muito bom senhor presidente! – respondia ele, enquanto seu holograma se aproximava quase ao ponto de pegar minha taça – Estou certo que o senhor entende que mudanças não podem ocorrer de maneira traumática. Sei que falo hoje com o senhor, representando uma enorme frente de parlamentares, gente graúda das duas casas, sabe? Gente com história! Gente que deu a vida por votos e pelo país!

-Sei! – respondi, num tom que deixava claro que deveria prosseguir.

-O senhor é peixe novo, será um prazer ensiná-lo como funciona esse vasto oceano profundo e frio. O presidente do Senado falava comigo sobre isso há poucas horas, enquanto manifestava a preocupação sobre o que o senhor pensa em relação ao aumento de salário dos nobres membros do judiciário, por exemplo. Como se o senhor não soubesse o quanto aquele povo do supremo precisa ler para julgar os processos. A pressão psicológica que sofrem, chega dar dó! São muito especiais para o Brasil e devem ser cuidados e protegidos por todos nós! Já nós, parlamentares, exercemos um papel muito especial também na estrutura democrática brasileira, mesmo que infelizmente não gozemos do reconhecimento que merecemos do povo, que muitas vezes age de maneira ingrata. Acredita o senhor, que julgam o nosso próximo reajuste um aumento abusivo de salário? Está em toda mídia! Logo com um país tão rico como o nosso! Como se não fossemos cidadãos com direitos! Vivemos hoje numa espécie de parlamentarfobia! Não reconhecem que sem a nossa ajuda, não existe nesse país a possibilidade real de alguma mudança.

Fiquei em silêncio.

-Qualquer mudança – ele prosseguiu- passa pela nossa…dedicação! Estou sendo claro, senhor presidente?

– Acho que à essa hora da manhã, ninguém consegue ser muito claro senhor deputado- respondo-o dando uma pausa para reacender o Charuto- talvez o senhor devesse me retornar amanhã, explicar com mais calma. Seria provavelmente mais prudente!

– Claro, Claro! – Disse o deputado se afastando devagar- O senhor deve estar cansado! Muita informação para assimilar! Como represento uma classe tão especial, confesso que estava ansioso para lhe tecer minhas congratulações, mas me desculpo pelo inconveniente do horário. Certamente o senhor precisa de tempo para a ficha cair! Tenha um boa noite, senhor presidente, obrigado pela atenção!

– Obrigado e boa noite deputado! – Respondi alisando novamente a pulseira.

Puta que pariu!

Durante as próximas horas, dias e semanas, atendi ligações e tive encontros com inúmeras outras pessoas, nada muito diferente:

– É uma honra presidente, o senhor sabe que nós, como países vizinhos, possuímos uma relação estreita e muito especial de irmandade entre nossos povos, podemos então…

– O senhor sabe o quão especial é a aliança dos nossos países, nossos inimigos não esperam que…

– O Agro, senhor presidente, e falo como representante desse especial setor da economia brasileira, é fundamental nas diretrizes da…

– Reconhecemos no senhor uma esperança no que tange a valorização das forças militares no país, temos especial valor no sentido de…

– O sindicato dos jornalistas, categoria de especial representatividade em qualquer democracia, espera do senhor que…

– Nós, do setor bancário, mesmo criticados, representamos especial papel no…

– Como representantes da indústria e do comércio, que especialmente é a chave de desenvolvimento para o futuro do…

– Nós empresários exercemos um papel especial na economia e na geração de empregos, sendo por muitas vezes…

– Sabemos dos problemas passados, mas como construir um país sem o especial conhecimento de nós, construtoras?

– É fundamental que o senhor tenha dedicação especial para o desenvolvimento de políticas de empoderamento feminino, porque a cultura machista imposta por esse sistema patriarcal…

– A causa LGBT+, requer especial cuidado, considerando que pesquisas indicam que…

– É importante ressaltar que, considerando o papel histórico do negro do Brasil, ainda precisamos de especial dedicação para se vencer o racismo estrutural, desenvolvendo mais protagonismo e representatividade das…

– As Universidades Públicas exercem um especial papel no desenvolvimento cientifico e intelectual do…

– As Universidades privadas exercem um especial papel no desenvolvimento cientifico e intelectual do…

– Senhor, sem o trabalho especial que nossa igreja faz com…

– A arte deve sim ocupar um lugar especial nos interesses da nação, porque o povo não pode viver só de…

– O senhor sabe que nós, representantes dos produtores de linguiça artesanal do sul de Minas, temos especial interesse em…

– Como representante do funcionalismo público, devemos exaltar nossa especial contribuição para os serviços de…

– É preciso dar especial atenção para o nosso setor de Planos de Saúde, considerando que…

Nós, professores. Nós, Garis. Nós, cantores de Rap. Nós, da comunidade. Nós, bombeiros. Nós, policiais. Nós, pescadores. Nós, juízes. Nós, esportistas. Nós, deficientes físicos. Nós, pobres. Nós, ricos. Nós, europeus. Nós, americanos. Nós, gordos. Nós, magros. Nós, latinos. Padres, médicos, psicólogos, prostitutas, veganos, moradores de rua, pais, youtubers, escritores, intelectuais, pastores, empreendedores, músicos. Nós, nós, nós! Etc.Etc.Etc!

O céu estava nublado no dia da posse, me trazendo certa nostalgia. Me deu vontade de comer pizza, mas todos já estavam prontos e o cerimonial já havia começado.

Com os contatos que tive nos dias anteriores, pude perceber um padrão que se alastrava de maneira aterradora, um problema, algo que deveria ser solucionado e que parecia estagnar qualquer tentativa frutífera de real prosperidade para o país. Eu estava empenhado em combater isso, era meu norte! De algum lugar, alguém gritou pra mim que faltava 10 segundos para a minha aparição. Em pouco tempo eu estaria com a faixa presidencial e poderia combater o problema que me atormentava nos últimos dias.

Do lado de fora oposto da cortina em que eu aguardava de mãos dadas com minha esposa, pude ouvir uma voz feminina em tom de espetáculo anunciar:

– Senhoras e senhores, recebam o novo dono do posto mais especial de nossa república…

Suspirei!

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