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Pantera Negra: Virtuosismo afrofuturista que transcende os quadrinhos, por Hélio Rainho

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Artigo de Fevereiro de 2018 do Blog do Léo, mas republicado 

Os quadrinhos ficaram adultos! E o que é melhor: não ficaram chatos. A saga do herói Pantera Negra (Black Panther, 2018), o novo (e estrondoso) sucesso cinematográfico da Marvel, mostra que um bom discurso pode ser eficaz pela sutileza, convincente pela reflexão, encantador pela diferença. Engajado até a última vértebra, o filme consegue ser discursivo sem ser panfletário. Esbanja ação, entretenimento. Mas é recheado de proposições filosóficas que fazem os bons entendedores saírem maravilhados do cinema.

“Sem-querer-querendo”, o jovem diretor Ryan Coogler, de apenas 31 anos, virou um Spike Lee do século XXI. E haveria de ser em um filme de referência considerada “pouco nobre” – o universo dos heróis em quadrinhos – que Hollywood se surpreenderia com um filmaço campeão de bilheteria onde um diretor negro emplacou um elenco de estrelas negras pra ninguém botar defeito. Em plena era de protestos veementes de porta-vozes da causa, com artistas assinando manifestos e até boicotando eventos de premiação em que atores ou diretores negros não são indicados, “Pantera Negra” desfila suas duas horas e 14 minutos de filme com predomínio praticamente absoluto de afrodescendentes em ação.

E que ação!

Esqueçam todos os lugares comuns de filmes com temática africana. Se você imaginava uma trama com flagelos, escravos, miséria, doenças e hostilidades, vai se deparar com um mundo muito diferente. Pasme: não obstante ser uma obra de ficção, esse mundo realmente existe. Curiosamente parece oculto ou pouco interessante pra quem ainda quer vender a imagem de uma África miserável e subserviente ao mundo. “Pantera Negra” não nega, quando lhe é pertinente, a face rude e discriminatória do abandono social do negro nas sociedades brancas. Mas reitera com força e seriedade que esse erro histórico precisa ser corrigido não apenas por reparação ou devida paga. O filme deixa claro que é uma simples questão de lógica. Afirmação mais absoluta e afirmativa da grandeza africana, impossível.

A fictícia Wakanda onde reina o Príncipe T’Challa, o Pantera Negra, é uma potência tecnológica, dominadora das ciências e dos artifícios, consagrando sua sabedoria ancestral não como primitivismo, mas com a devida força de seus ritos emancipada como poderio governamental. A iniciação dos Panteras Negras, governantes dessa nação altamente cibernética e tecnológica, utiliza esses rituais de forma a conjugar passado e futuro, tribalismo e ciência. O regente de Wakanda, para ser entronizado, precisa conjugar o rito e a ciência. Ele é duplamente qualificado. O afrofuturismo está presente nas cores dos belos figurinos de Ruth Carter, uma figurinista negra famosa por seus trabalhos em “Raízes” (2016), “Selma – Uma Luta Pela Igualdade” (2014), “Amistad” (1997) e “Malcolm X” (1992). Como se vê, atrelada à causa, também.

E é tendo por pano de fundo essa potência mundial que se estende o dilema central da trama: uma rixa shakespeariana em uma disputa de trono entre um T’Challa (Chadwick Boseman) herdeiro legítimo e um Erik Killmonger (Michael B. Jordan) bastardo, lançado fora de seu lugar de origem e submetido – este sim – aos malogros e descalabros do preconceito racial na América dos brancos. Desviado de sua terra e de seu direito de postular ao reino, Erik responde ao infortúnio com revanchismo e espírito de vingança: sua ânsia de devolver ao mundo eminentemente branco os maus tratos sofridos o cega ao ponto de ele se dispor a destronar um monarca, subjugar seu próprio povo, execrar suas tradições e corromper seus ritos. A causa pessoal passa a ter mais valor do que o grande discurso. E é exatamente nesse ponto que um filme despretensioso como este sci-fi de aventura adquire contexto filosófico, repetindo a mesma polaridade já proposta pela Marvel na oposição entre o Professor Xavier e o vilão Magneto em “X-Men”: vale devolver com ódio e violência o troco pelo preconceito e pela insidiosa discriminação?

“Pantera Negra” é um filme corajoso. Ele transcende a necessidade de situar a trama num continente negro por suas razões peculiares e o faz com grande propriedade. As mulheres da trama, por exemplo, são absolutamente destacadas. Aguerridas, partícipes do reino, constituintes do exército real, em momento algum elas aparecem submissas ou devotadas a algum tipo de jugo masculino. Fica claro que na sociedade africana, além da tecnologia e da ciência, o avanço é também moral: a equidade de gênero não é manuseio político nem discurso de ocasião, mas realidade vivida e inquestionável.

Estão ali as cenas épicas de luta, efeitos especiais, cenários futuristas deslumbrantes, maquinários incríveis e toda grandiloquência que os filmes de super-heróis devem oferecer aos seus admiradores. Chadwick Boseman reina, de fato, absoluto como um herói humano e ético, sem pieguices ou lugares comuns. O elenco traz belas intepretações, e fica difícil destacar algumas sem parecer injusto com outras. O amargurado Erik tem uma interpretação convincente do galante Michael B. Jordan; Lupita Nyong’o entrega uma guerreira Nakia verdadeira e comovente; Forest Whitaker empresta seu brilho convencional ao imponente Zuri. Todos beneficiados pelo roteiro da dupla Ryan Coogler e Joe Robert Cole, obviamente inspirados nos mestres da Marvel, Stan Lee e Jack Kirby.

Em dado momento do filme, T’Challa lembra que “em tempos de crise, os sábios constroem pontes, enquanto os tolos constroem barreiras”. Ao retratar uma nação negra soberana e povoada por nativos engrandecidos em seus papéis históricos, “Pantera Negra” atropela a visão fatalista e subserviente dos africanos, propondo um olhar que transcende o estereótipo da África muito comum em outros roteiros. Embora sem negar a discriminação e os horrores impostos a seus nativos e descendentes fora de seu território, o filme rasga o verbo que insiste em reforçar esses horrores como uma herança histórica em forma de meritocracia às avessas, mostrando que a ignorância generalizada e a tendenciosidade racista são agentes que insistem em negar a imponência e a grandeza da cultura negra no planeta. Deve ser essa visão diferenciada a ponte maior citada por T’Challa como virtude dos sábios. Deve ser essa a razão de “Pantera Negra” figurar com maestria entre os melhores – senão o melhor – dentre os filmes já realizados por esse extraordinário Universo Marvel.

Hélio Ricardo Rainho é diretor e autor teatral, comentarista de carnaval pelo site SRZD, bacharel em Comunicação Social e mestrando em Bens Culturais e Projetos Sociais na Fundação Getúlio Vargas.

 

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