domingo, maio 12, 2024

É Isto um Homem? Por Erick Bretas

BLOG DO LEOÉ Isto um Homem? Por Erick Bretas

​Erick Bretas

Todo mundo deveria, em algum momento da vida, ler um livro sobre o Holocausto escrito por um de seus sobreviventes.

Eu li e recomendo “É Isto Um Homem?”, de Primo Levi. Um texto que dá humanidade a eventos que os livros escolares tratam com a frieza e a grandiloquência das narrativas históricas. Frieza talvez reforçada pelas imagens de arquivo da Segunda Guerra, de cadáveres de prisioneiros jogados nas valas comuns dos campos de concentração.

A morte em escala industrial tira de suas vítimas o direito a nome e história pessoal. Daí a importância de um relato como o de Primo Levi, judeu italiano levado para Auschwitz que sobrevive, em parte, graças aos seus conhecimentos de química, úteis na produção de borracha. 
Logo no início do livro Levi tem uma discussão com um prisioneiro húngaro chamado Steinlauf, que faz questão de tomar banho e se barbear frequentemente. Uma futilidade, aos olhos do recém-chegado Levi, cuja principal preocupação é manter-se vivo. Steinlauf então explica suas razões: exatamente porque aquele lugar é feito para transformar homens em animais, os internos devem resistir e preservar sua humanidade. O asseio seria uma maneira de fazê-lo.

As relações de Levi com seus companheiros de Auschwitz são complexas. A luta pela sobrevivência não comporta gentilezas e os prisioneiros se vêem frequentemente forçados a disputar migalhas de comida ou traficar objetos numa espécie de mercado negro. Mas, de alguma forma, os que vão sobrevivendo criam laços do que seria chamado, em circunstâncias normais, de amizade.

Histórias como essa fazem lembrar que a verdadeira tragédia do Holocausto não está apenas na morte de seis milhões de homens e mulheres, mas na desumanização de suas vítimas.

Penso em tudo isso por conta da coluna do Gregorio Duvivier muito compartilhada hoje, inclusive por amigos meus, em que a atual situação política do Brasil é comparada à ascensão nazista na Alemanha. Gregório responde a um editorial da Folha da última sexta-feira, que pede repressão a protestos violentos contra o governo Temer e alude ao esfacelamento da República de Weimar, sucedida, nas urnas, pelo gabinete de Hitler.

Paralelos infelizes, o do editorial da Folha e o da coluna do Gregório, e que evidenciam uma certa falta de baliza no nosso debate político. 
Jogar a carta do nazismo é um truque vulgar para capturar simpatias em posições extremas. Se não é algo feito de propósito, com o objetivo de brutalizar a imagem de um suposto adversário ideológico, é, na melhor das hipóteses, uma gafe de muito mau gosto. 
Evitar coisas assim seria possível com um mínimo de autocontenção: todo editorialista ou colunista que cogitasse equiparar os trancos da nossa democracia à tragédia representada pelo nazi-fascismo deveria imaginar seu texto lido pelo húngaro Steinlauf. Como reagiria o homem que lutava para manter a dignidade pessoal de seus companheiros à comparação do Brasil com Auschwitz?
Ainda há sobreviventes do Holocausto vivos, inclusive no Brasil. Alguns deles participam de eventos de entidades israelitas e narram suas memórias, com o objetivo de educar os mais jovens para que aqueles fatos nunca se repitam. 
Talvez fosse interessante aos que gritam “fascistas, fascistas” ouvir o que eles contam. Ou, simplesmente, ler o poema de abertura de “É Isto Um Homem?” para entender, afinal, o que o fascismo de verdade fez a suas vítimas:

“Vocês que vivem seguros,
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos, 
pensem bem se isto é um homem, 
que trabalha no meio do barro, 
que não conhece paz, 
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou um não.
Pensem bem se isto é uma mulher, 
sem cabelos e sem nome, 
sem mais força para lembrar, 
vazios os olhos, frio o ventre, 
como um sapo no inverno. 
Pensem que isto aconteceu:
Eu lhes mando estas palavras,
Gravem-na em seus corações,
Estando em casa, andando na rua,
Ao deitar, ao levantar,
Repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
ou seus filhos virem o rosto para não vê-los”.

Erick Bretas é jornalista

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